São Paulo, terça-feira, 12 de setembro de 2000

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Linchamento


Que crime a mídia tenta expiar ao se negar a discutir os direitos básicos de Pimenta, obrigando-o ao suicídio ritual?


ENIO MAINARDI

O Pimenta Neves me telefonou, lá da Granja Julieta, onde se encontrava preso: "Olha, amigo, você fez tudo direitinho. Só errou numa coisa: não me deixou morrer". A reclamação era porque eu o havia levado para o Hospital Albert Einstein, em coma, depois de ele tentar o suicídio com uma overdose de tranquilizantes. Agora me pergunto: será que o Pimenta sobreviveu mesmo?
Outro amigo, depois de visitá-lo, dessa vez na cadeia, me contou que, ao contrário do que muitos pensam, o Pimenta morreu. Isso porque Antônio, como é chamado em família, não está suportando mais. Não por causa das algemas, dos carros de polícia com luzes giratórias, das sirenes, dos helicópteros, da cobertura ao vivo. Nem por causa da humilhação da cela, um buraco servindo de privada, o colchonete no chão.
Sem queixas: a condição carcerária dele até que é boa numa cela de 9 m2 para seis pessoas. Afinal estamos no Brasil. Ele tem direito a esse privilégio por ter curso superior. Em outra cela igual, nos fundos da delegacia, estão 23 presos.
O problema é que ao Antônio sobra consciência. Lembra-me o diálogo de um filme, "Os Imperdoáveis", em que um rapazola, depois de haver cometido seu primeiro crime, se lamenta ao parceiro veterano: "Não parece verdade. Ele nunca mais vai respirar. Ele está morto. Só porque puxei o gatilho". O veterano então diz: "Matar um homem é uma coisa infernal. Você tira tudo o que ele tem e tudo o que ele poderia ter na vida um dia". É triste pensar que Pimenta, quando tirou a vida de Sandra, também cancelou os filhos que ela poderia ter tido, essa família que nunca vai acontecer, em nenhum outro futuro.
Com esse assassinato, Pimenta cortou também a sua própria vida, a da sua ex-mulher e a das filhas. Isso tudo já está decretado, o epitáfio de Sandra tem muitas páginas já escritas. E o Pimenta terá de enfrentar o seu próprio martírio.
Tal tragédia poderia ser suficiente, mas não é. A cobertura da mídia continua, quase patologicamente, prolongando a hora do espanto com mais e mais detalhes mórbidos, com a intenção talvez inconsciente de condenar Pimenta sem lhe deixar qualquer atenuante, qualquer explicação, beirando a histeria dos linchamentos.
Lembro-me de outro filme, o "Sétimo Selo", de Ingmar Bergman, de uma cena que mostra uma procissão de farrapos humanos que passa se açoitando, gemendo, cada um buscando na dor, no sofrimento físico, a tentativa de exorcizar a peste que ceifava tantas vidas naqueles tempos da Idade Média.
Que tipo de redenção quer alcançar a imprensa, com essa autoflagelação, permitindo que um colega de profissão seja justiçado nas redações e nos auditórios de TV e seus apresentadores travestidos de juízes? Exatamente que crime a imprensa tenta expiar quando se nega a discutir e defender os direitos básicos de Pimenta, obrigando-o ao suicídio ritual? Só na cidade de São Paulo, há mais de 800 homicidas passionais aguardando julgamento em liberdade. Qual a razão de se negar isso ao Pimenta?
Tem aí um sentimento de culpa coletivo da imprensa, algo difuso, que exige explicação. Os jornalistas, naturalmente investigativos, terão de chegar ao fim dessa jornada psicoterápica, desse quase acovardamento que paralisa suas capacidades de indignação. Não é de fúria demagógica que a Justiça precisa -nem da indiferença que tudo deixa passar.
A Justiça se alimenta da reflexão que tenta entender os mistérios da alma humana, que pondera sem o sentimento de vingança, resistindo às pressões dos que querem que a lei seja servil ao aplauso fácil, ao populismo facistóide.
Alguém já disse que "nada do que é humano me é desconhecido".
A cada momento nossa consciência e sorte nos empurram para aquilo que pode ser a nossa condenação ou salvação. Está tudo dentro de nós. Dão o nome de destino a esse jogo de azar. Que nós, os que por enquanto sobrevivemos, tenhamos compaixão. Praticar a compaixão, aliás, é esperto: porque assim estaremos exercendo tal sentimento em nosso próprio favor, fracos que somos. O tribunal lá de cima talvez decida, na ocasião certa, levar esse habeas corpus preventivo em consideração quando nós mesmos estivermos sendo os julgados.


Enio Mainardi, 65, é publicitário.



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