|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Moral?
ROSE MARIE MURARO
A honestidade e a moralidade da maioria da população sempre
foram o esteio da sociedade de classes
O ARTIGO de Paulo Betti ("Tendências/Debates", 5/9) e a polêmica que desencadeou mexeram comigo. Por isso, gostaria de
colaborar com algumas reflexões.
No livro "Sexualidade da Mulher
Brasileira: Corpo e Classe Social no
Brasil", que escrevi com a colaboração de vários especialistas, descobrimos a lógica das classes.
Desde que nascem, as crianças ricas
têm todos os seus desejos satisfeitos.
Por isso, tendem, até o fim da vida, a
considerar que o mundo lhes pertence, porque tudo o que a criança percebe no primeiro ano de vida é impresso
não só em seu inconsciente mas também em seu próprio corpo.
Já os filhos de camponesas mais
pobres, em geral desnutridas e que
não têm tempo de cuidar das crianças, percebem que sua fome e seus desejos não são para ser satisfeitos. Assim, apreendem, sem questionar, o
mundo como expropriador de seus
direitos essenciais.
Essa é a base da relação opressor/oprimido, característica essencial do
sistema competitivo/capitalista/neoliberal, que nunca é, nesse nível inconsciente, questionada pelas pessoas. A classe dominante, sem pudor,
faz as leis e as transgride segundo
seus interesses. A dominada (da classe média para baixo) é ensinada que
tem de obedecer a essas mesmas leis
-porque, senão, será punida- e que
todo cidadão tem de ser honesto para
ser aceito.
Desde sempre, a transgressão das
leis é chamada de corrupção. Na atual
sociedade da informação, a novidade
é que a mídia, mesmo que não queira,
é obrigada a denunciar episódios de
corrupção e fraude. Se não o fizer, não
"vende" para a grande maioria, honesta e indignada.
Ou seja, a honestidade e a moralidade da maioria da população sempre
foram o esteio da sociedade de classes. As religiões sempre ensinaram
que só o amor e o altruísmo levam a
uma vida melhor depois da morte. Assim, no decorrer dos milênios, foi se
criando uma dupla moral. A dos senhores, que podiam fazer tudo o que
quisessem, e a dos subordinados, que
tinham de respeitar a lei para poderem ser felizes após a morte.
A boa novidade no Brasil é que essas maiorias elegeram um presidente
oriundo da classe dominada, de quem
não se esperava que transgredisse a
lei da honestidade e da moralidade. E
quando ele se viu obrigado a jogar o
jogo da classe dominante para continuar no poder, houve uma grita a partir da classe média, sinceramente honesta, contra a corrupção e a fraude
que esse mesmo presidente antes
condenava.
E os pobres, que sabem desde o nascimento que são expropriados de
quase tudo, crêem, também sinceramente, que, já que são sempre roubados pelos dominantes, pelo menos
darão o seu voto a quem reparte com
eles alguma fatia desse roubo.
Toda essa lógica foi corroborada
por um amigo banqueiro que me dizia: "Você é uma idiota romântica.
Corrupção é correlação de forças, e
fraude são as leis do mercado". Esse
pensamento é típico dos que dominam o sistema neoliberal e que sabem
que, se forem honestos, serão logo
derrotados na competição; se não tiverem "caixa dois", estarão trabalhando para o governo sem lucrar e
logo entrarão no vermelho.
Essa lei não escrita é duríssima,
mais para a classe dominante que para os que se acomodam na sua honestidade. Todo grande empresário ou
político sabe que a competição é mortal. E eles têm de sobreviver à custa da
morte simbólica dos outros. Eles fabricaram a noção de moralidade para
que os dominados continuassem pobres, sem competir com eles (ricos),
mas eles mesmos sabem que o jogo
entre os seus iguais é muito pesado.
A única queixa que tenho do presidente Lula é que, em vez de trocar as
antigas elites por novas elites menos
corrompidas, ele fez a troca pela metade, deixando na área econômica todo o poder ao sistema financeiro, quebrando, com isso, o sistema produtivo. Mexer com o sistema financeiro
seria bater de frente com o sistema
dominante.
A verdadeira luta pela justiça é trocar as elites antigas por outras mais
comprometidas com a justiça. Ser
moral dentro de um sistema imoral é
legitimar a imoralidade. A ética só é
verdadeira quando se trata o problema a partir de suas raízes, transformando um sistema mortal e competitivo num outro em que as decisões sejam tomadas pela sociedade organizada de baixo para cima e que, portanto, possa suprir as necessidade de
todos, e não apenas as de uma classe
treinada desde que nasce para ter
seus interesses atendidos a qualquer
preço. Acho que só é honestidade a luta contra a injustiça.
ROSE MARIE MURARO, 75, formada em física e em economia, é editora, escritora e membro fundadora do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Boris Fausto: Desencanto e esperança
Índice
|