São Paulo, terça-feira, 12 de setembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Moral?

ROSE MARIE MURARO

A honestidade e a moralidade da maioria da população sempre foram o esteio da sociedade de classes

O ARTIGO de Paulo Betti ("Tendências/Debates", 5/9) e a polêmica que desencadeou mexeram comigo. Por isso, gostaria de colaborar com algumas reflexões.
No livro "Sexualidade da Mulher Brasileira: Corpo e Classe Social no Brasil", que escrevi com a colaboração de vários especialistas, descobrimos a lógica das classes.
Desde que nascem, as crianças ricas têm todos os seus desejos satisfeitos. Por isso, tendem, até o fim da vida, a considerar que o mundo lhes pertence, porque tudo o que a criança percebe no primeiro ano de vida é impresso não só em seu inconsciente mas também em seu próprio corpo.
Já os filhos de camponesas mais pobres, em geral desnutridas e que não têm tempo de cuidar das crianças, percebem que sua fome e seus desejos não são para ser satisfeitos. Assim, apreendem, sem questionar, o mundo como expropriador de seus direitos essenciais.
Essa é a base da relação opressor/oprimido, característica essencial do sistema competitivo/capitalista/neoliberal, que nunca é, nesse nível inconsciente, questionada pelas pessoas. A classe dominante, sem pudor, faz as leis e as transgride segundo seus interesses. A dominada (da classe média para baixo) é ensinada que tem de obedecer a essas mesmas leis -porque, senão, será punida- e que todo cidadão tem de ser honesto para ser aceito.
Desde sempre, a transgressão das leis é chamada de corrupção. Na atual sociedade da informação, a novidade é que a mídia, mesmo que não queira, é obrigada a denunciar episódios de corrupção e fraude. Se não o fizer, não "vende" para a grande maioria, honesta e indignada.
Ou seja, a honestidade e a moralidade da maioria da população sempre foram o esteio da sociedade de classes. As religiões sempre ensinaram que só o amor e o altruísmo levam a uma vida melhor depois da morte. Assim, no decorrer dos milênios, foi se criando uma dupla moral. A dos senhores, que podiam fazer tudo o que quisessem, e a dos subordinados, que tinham de respeitar a lei para poderem ser felizes após a morte.
A boa novidade no Brasil é que essas maiorias elegeram um presidente oriundo da classe dominada, de quem não se esperava que transgredisse a lei da honestidade e da moralidade. E quando ele se viu obrigado a jogar o jogo da classe dominante para continuar no poder, houve uma grita a partir da classe média, sinceramente honesta, contra a corrupção e a fraude que esse mesmo presidente antes condenava.
E os pobres, que sabem desde o nascimento que são expropriados de quase tudo, crêem, também sinceramente, que, já que são sempre roubados pelos dominantes, pelo menos darão o seu voto a quem reparte com eles alguma fatia desse roubo.
Toda essa lógica foi corroborada por um amigo banqueiro que me dizia: "Você é uma idiota romântica. Corrupção é correlação de forças, e fraude são as leis do mercado". Esse pensamento é típico dos que dominam o sistema neoliberal e que sabem que, se forem honestos, serão logo derrotados na competição; se não tiverem "caixa dois", estarão trabalhando para o governo sem lucrar e logo entrarão no vermelho.
Essa lei não escrita é duríssima, mais para a classe dominante que para os que se acomodam na sua honestidade. Todo grande empresário ou político sabe que a competição é mortal. E eles têm de sobreviver à custa da morte simbólica dos outros. Eles fabricaram a noção de moralidade para que os dominados continuassem pobres, sem competir com eles (ricos), mas eles mesmos sabem que o jogo entre os seus iguais é muito pesado.
A única queixa que tenho do presidente Lula é que, em vez de trocar as antigas elites por novas elites menos corrompidas, ele fez a troca pela metade, deixando na área econômica todo o poder ao sistema financeiro, quebrando, com isso, o sistema produtivo. Mexer com o sistema financeiro seria bater de frente com o sistema dominante.
A verdadeira luta pela justiça é trocar as elites antigas por outras mais comprometidas com a justiça. Ser moral dentro de um sistema imoral é legitimar a imoralidade. A ética só é verdadeira quando se trata o problema a partir de suas raízes, transformando um sistema mortal e competitivo num outro em que as decisões sejam tomadas pela sociedade organizada de baixo para cima e que, portanto, possa suprir as necessidade de todos, e não apenas as de uma classe treinada desde que nasce para ter seus interesses atendidos a qualquer preço. Acho que só é honestidade a luta contra a injustiça.


ROSE MARIE MURARO, 75, formada em física e em economia, é editora, escritora e membro fundadora do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.


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