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Desencanto e esperança
BORIS FAUSTO
Poucas vezes como agora foi preciso retomar os princípios da moralidade política, tendo presente que ela não é idêntica à da vida privada
ANTE AS pesquisas eleitorais,
há uma sensação de desencanto entre muitos setores mais
informados da sociedade. Como explicar que, depois de tanta desfaçatez,
depois de tantos pronunciamentos
absurdos, o candidato-presidente seja favorito nas eleições presidenciais?
Nesse quadro, é preciso ter a frieza
possível de análise, sem refrear a indignação, para entender o que ocorre
e recusar a tese da irracionalidade das
massas e da política em geral.
Repisando observações de muitos
analistas, Lula vai à frente porque manipula com maestria seu carisma,
porque o país é muito desigual e o assistencialismo é uma arma considerável, sobretudo nas regiões mais pobres, e porque a oposição apostou em
desdobramentos que não ocorreram
e perdeu o "timing", ficando na simples denúncia do chorrilho de atos ilícitos e desvios morais.
O desencanto, na sua forma extrema, traz consigo perigosa tendência
de voltar as costas ao mundo político
e à participação política. É necessário
entender esse sentimento, o que não
significa justificá-lo, diante do que vimos assistindo nos últimos anos.
A figura presidencial ganhou dimensões estarrecedoras com a revelação das ofensas a personalidades e
países vizinhos. Como a enxurrada de
barbaridades verbais não tem fim,
convém repetir e gravar na memória
o que o candidato-presidente disse,
após algumas doses liberadoras de
uísque, sobre o país que é modelo de
democracia, crescimento e estabilidade na América Latina: "O Chile é
uma merda, uma piada. Eles fazem o
acordo deles com os americanos.
Querem mais é que a gente se f... por
aqui. Eles estão c... para nós" ("Viagens com o presidente", de Eduardo
Scolese e Leonêncio Nossa).
Há desencanto também com o PT,
o partido da "ética na política", convertido em máquina justificadora de
ilicitudes e de arrebanhar votos, ao
preço (a palavra não é ocasional) de
alianças sem princípios. Desencanto
ainda com o desvio moral que se apossou de muitas pessoas, como se viu no
decantado encontro do candidato-presidente com um punhado de intelectuais e artistas.
Mas é preciso não cruzar os braços
diante da voracidade dos atuais donos
do poder e muito menos ceder ao niilismo não só dos que votam em branco mas também de alguns intelectuais
para os quais o Brasil perdeu o "bonde
da história", de tal forma que o campo
das decisões, sobretudo das decisões
políticas, teria se tornado irrelevante.
Poucas vezes como agora foi necessário superar esse sentimento a partir
de uma retomada dos princípios básicos da moralidade política, tendo-se
presente o fato de que ela não é idêntica à moralidade da vida privada.
A frustração provocada pelo PT em
muitos militantes e simpatizantes
deixou um vazio considerável que
precisa ser ocupado por pessoas sinceramente decepcionadas, dispostas,
não obstante, a levar avante objetivos
de natureza política. Esses objetivos
passam necessariamente pela reconstrução dos partidos -e, nesse caso,
estou falando em especial do PSDB,
longe de estar isento de problemas-,
excluindo, porém, a famigerada "refundação petista".
Um papel essencial nesse sentido
cabe às lideranças, hoje muito aquém
de servir de pólos aglutinadores e de
transformar a ação política num campo atraente de atuação. Se a política
não tiver pelo menos alguns gramas
de prazer, além de muito suor, se assumir a forma de missão, nunca atrairá os mais lúcidos e mais capazes nesta época em que os sonhos revolucionários se esfumaram e embalam apenas as cabeças de ínfimas minorias.
É esperançoso observar que a disposição de muitas pessoas de atuar no
plano coletivo vem crescendo, como
se verifica pelo voluntariado em trabalhos sociais. Trata-se, o que não é
simples, de combinar pelo menos
uma parte dessa salutar disposição
com a participação na vida política.
Deliberadamente, passei apenas de
raspão pelo quadro eleitoral. Não por
achar que a disputa presidencial já esteja decidida ou por ignorar um importante campo decisório em aberto
na escolha de governadores e de um
renovado corpo legislativo.
Tratei de assinalar, com esse enfoque, que nem tudo se esgota com a
disputa eleitoral, com os cálculos dos
candidatos sobre o que é ou não eficaz
dizer em termos de rendimento eleitoral. Pelo contrário, assegurados os
direitos democráticos, entre eles a liberdade de expressão, pela força da
sociedade e das melhores vozes políticas, há à frente um campo aberto para
retomar a vida política, não a partir do
zero, mas em novas bases. A esperança está viva e precisa ser cultivada.
BORIS FAUSTO, historiador, presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da
USP, é autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30".
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