São Paulo, terça-feira, 12 de setembro de 2006

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Desencanto e esperança

BORIS FAUSTO

Poucas vezes como agora foi preciso retomar os princípios da moralidade política, tendo presente que ela não é idêntica à da vida privada

ANTE AS pesquisas eleitorais, há uma sensação de desencanto entre muitos setores mais informados da sociedade. Como explicar que, depois de tanta desfaçatez, depois de tantos pronunciamentos absurdos, o candidato-presidente seja favorito nas eleições presidenciais?
Nesse quadro, é preciso ter a frieza possível de análise, sem refrear a indignação, para entender o que ocorre e recusar a tese da irracionalidade das massas e da política em geral.
Repisando observações de muitos analistas, Lula vai à frente porque manipula com maestria seu carisma, porque o país é muito desigual e o assistencialismo é uma arma considerável, sobretudo nas regiões mais pobres, e porque a oposição apostou em desdobramentos que não ocorreram e perdeu o "timing", ficando na simples denúncia do chorrilho de atos ilícitos e desvios morais.
O desencanto, na sua forma extrema, traz consigo perigosa tendência de voltar as costas ao mundo político e à participação política. É necessário entender esse sentimento, o que não significa justificá-lo, diante do que vimos assistindo nos últimos anos.
A figura presidencial ganhou dimensões estarrecedoras com a revelação das ofensas a personalidades e países vizinhos. Como a enxurrada de barbaridades verbais não tem fim, convém repetir e gravar na memória o que o candidato-presidente disse, após algumas doses liberadoras de uísque, sobre o país que é modelo de democracia, crescimento e estabilidade na América Latina: "O Chile é uma merda, uma piada. Eles fazem o acordo deles com os americanos.
Querem mais é que a gente se f... por aqui. Eles estão c... para nós" ("Viagens com o presidente", de Eduardo Scolese e Leonêncio Nossa).
Há desencanto também com o PT, o partido da "ética na política", convertido em máquina justificadora de ilicitudes e de arrebanhar votos, ao preço (a palavra não é ocasional) de alianças sem princípios. Desencanto ainda com o desvio moral que se apossou de muitas pessoas, como se viu no decantado encontro do candidato-presidente com um punhado de intelectuais e artistas.
Mas é preciso não cruzar os braços diante da voracidade dos atuais donos do poder e muito menos ceder ao niilismo não só dos que votam em branco mas também de alguns intelectuais para os quais o Brasil perdeu o "bonde da história", de tal forma que o campo das decisões, sobretudo das decisões políticas, teria se tornado irrelevante.
Poucas vezes como agora foi necessário superar esse sentimento a partir de uma retomada dos princípios básicos da moralidade política, tendo-se presente o fato de que ela não é idêntica à moralidade da vida privada.
A frustração provocada pelo PT em muitos militantes e simpatizantes deixou um vazio considerável que precisa ser ocupado por pessoas sinceramente decepcionadas, dispostas, não obstante, a levar avante objetivos de natureza política. Esses objetivos passam necessariamente pela reconstrução dos partidos -e, nesse caso, estou falando em especial do PSDB, longe de estar isento de problemas-, excluindo, porém, a famigerada "refundação petista".
Um papel essencial nesse sentido cabe às lideranças, hoje muito aquém de servir de pólos aglutinadores e de transformar a ação política num campo atraente de atuação. Se a política não tiver pelo menos alguns gramas de prazer, além de muito suor, se assumir a forma de missão, nunca atrairá os mais lúcidos e mais capazes nesta época em que os sonhos revolucionários se esfumaram e embalam apenas as cabeças de ínfimas minorias.
É esperançoso observar que a disposição de muitas pessoas de atuar no plano coletivo vem crescendo, como se verifica pelo voluntariado em trabalhos sociais. Trata-se, o que não é simples, de combinar pelo menos uma parte dessa salutar disposição com a participação na vida política.
Deliberadamente, passei apenas de raspão pelo quadro eleitoral. Não por achar que a disputa presidencial já esteja decidida ou por ignorar um importante campo decisório em aberto na escolha de governadores e de um renovado corpo legislativo.
Tratei de assinalar, com esse enfoque, que nem tudo se esgota com a disputa eleitoral, com os cálculos dos candidatos sobre o que é ou não eficaz dizer em termos de rendimento eleitoral. Pelo contrário, assegurados os direitos democráticos, entre eles a liberdade de expressão, pela força da sociedade e das melhores vozes políticas, há à frente um campo aberto para retomar a vida política, não a partir do zero, mas em novas bases. A esperança está viva e precisa ser cultivada.


BORIS FAUSTO, historiador, presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP, é autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30".

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