São Paulo, sábado, 12 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O voto deveria ser facultativo?

SIM

A liberdade democrática de não votar

IVES GANDRA MARTINS

O artigo 14, parágrafo 1º, inciso I da Constituição Federal contém a seguinte dicção:
"Art. 14 - A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos e, nos termos da lei, mediante: (...) Par. 1º - O alistamento eleitoral e o voto são:
I. obrigatórios para os maiores de 18 anos...".
A Constituição brasileira hospedou a doutrina de Sieyés, que admite ser o ato de votar uma função que deve ser rigorosamente exigida, sob pena de sanção, e não, como queria Rousseau, um democrático direito do cidadão.
Celso Ribeiro Bastos e José Afonso da Silva defendem tese semelhante, qual seja, a do direito público subjetivo, que configura um direito que é também um dever. Vale dizer, o direito de votar seria, ao mesmo tempo, um dever perante o Estado.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, todavia, considera o voto obrigatório um malefício à democracia.
Tenho para mim que a posição do eminente catedrático de direito constitucional da USP é a correta.
Tornar o voto obrigatório é, indiscutivelmente, exigir que o cidadão escolha entre candidatos que não lhe agradem, obrigando-o a comparecer às urnas, nada obstante o desapreço pelas imposições partidárias dos postulantes ao cargo eletivo.
Dir-se-á que tem a faculdade de votar em branco ou anular seu voto. Ora, se o eleitor pode protestar votando em branco ou anulando seu voto, por que impingir-lhe a obrigação de comparecer às urnas, para dizer que não quer votar em nenhum daqueles candidatos indicados pelas quase sempre fechadas convenções partidárias?
Nesses casos, por que não adotar a solução de países com maior tradição democrática que o Brasil, em que o voto é facultativo? Na maioria das verdadeiras democracias, nesta matéria, a liberdade é absoluta.
É de lembrar que o Brasil não tem partidos políticos. Os partidos ideológicos mudam suas convicções de acordo com os marqueteiros da ocasião e os parlamentares mudam de partidos de acordo com as suas conveniências, nem sempre de possível revelação. Na maioria das vezes, praticam verdadeiro estelionato eleitoral, pois carregam os votos de outros candidatos dos partidos que os elegeram e que não conseguiram o coeficiente eleitoral daquela agremiação para receber um mandato popular.
Parlamentarista convicto que sou -e, nos regimes parlamentaristas, o voto não é obrigatório, na grande maioria das nações-, considero que o país não tem partidos políticos. Essa realidade poderia ser alterada se se adotasse o regime parlamentar, visto que propicia o governo da "responsabilidade a prazo incerto", enquanto o presidencialismo é o governo da "irresponsabilidade a prazo certo", sem mecanismos não-traumáticos para as substituições dos incompetentes ou corruptos.
Ora, convivendo o país com frágeis estruturas partidárias -normalmente dominadas por alguns "donos" permanentes e permanentes candidatos, assim como por políticos peregrinos pelas variadas siglas nacionais, que se multiplicam além do limite da razoabilidade-, restaria ao brasileiro o consolo de que, vivendo numa democracia, apesar da "aeticidade" dos detentores do poder, sua liberdade de escolha implicaria, inclusive, seu direito de não votar, se houvesse emenda à Constituição nesse sentido.
Não vejo, pois, por que essa liberdade de dizer não, de não concordar com os nomes apresentados, de se opor às preferências partidárias tenha que ser suprimida, e imposta "ditatorialmente" a obrigação de votar, sob pena de sanção, em verdadeiro atentado à liberdade democrática.
Que se siga o exemplo de nações mais estáveis democraticamente, como os Estados Unidos, em que o voto não é obrigatório e a liberdade de votar em branco ou anular o voto é exercida pelo não-comparecimento às urnas.


Ives Gandra da Silva Martins, 67, advogado tributarista, é professor emérito das universidades Mackenzie e Paulista e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército.



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