São Paulo, sábado, 12 de novembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Repressão e políticas sociais resolvem o problema dos distúrbios na França?

NÃO

A França e a "brasilianização" do mundo

BENTO PRADO JR.

"C'est la canaille? Eh bien j'en suis!"
("É a canalha? Pois bem, a ela pertenço!", de uma canção da Revolução Francesa)

 
Comecemos por notar a tensão interna da pergunta. Não seria melhor indicar a alternativa entre medidas repressivas e políticas sociais? Que a solução da crise, no limite, seja impossível, parece evidente, embora seja previsível, a curto prazo, o fim do surto atual.
Esqueçamos a utilidade eventual de medidas repressivas, já que a escolha da "tolerância zero" de Sarkozy contra a "racaille" (canalha) parece antes provocar do que neutralizar o problema. Fiquemos apenas nos efeitos possíveis das desejadas e necessárias políticas sociais. Mas, mesmo aí, o otimismo não parece ter cabimento: embora não devamos responder à pergunta de maneira totalmente negativa, como fez Adorno face ao livro de Ernst Bloch, "O Princípio Esperança", quando enunciou a famosa e sinistra frase: "Não há esperança".
Restrinjamo-nos, portanto, a uma única questão: "É possível, ao governo da França, estabelecer uma política social que elimine a reiteração dos distúrbios atuais, neutralizando as causas que os determinam?".
Guardando toda a esperança, é preciso reconhecer que a última globalização da economia e da sociedade (outras houve, desde o início da história moderna) determinou uma forte limitação do poder dos Estados nacionais. Se ainda fossem possíveis políticas econômicas e sociais por livre iniciativa das nações, por que há tanto tempo se insiste em projetos como os da União Européia e do Mercosul?
O estabelecimento do Império, com o fim do "socialismo real", a contrapelo das expectativas otimistas do ideólogo Fukuyama, não culminou no fim da história e no início da paz absoluta. Deu, até mesmo, início à universalização do conflito ou de uma guerra permanente (bem diferente da revolução permanente de Trótski!). A mudança foi profunda, como prova o fato de que um Bush seria inimaginável como presidente dos EUA no século passado (não temos espaço, aqui, para falar do Reagan).
De qualquer maneira, no novo mundo globalizado, é impossível imaginar uma grande cidade dos países avançados (ou do centro do capitalismo) que não tenha importado do Terceiro ou do Quarto Mundo uma larga população que passou a cercá-la como perigosa periferia. Tudo se passa como se a antiga oposição entre centro e periferia, entre países avançados e atrasados, tivesse sido interiorizada pelo próprio centro.
Lembro-me de meu espanto, há mais ou menos uma década, com a insurreição dos negros em Los Angeles. Eu me perguntava, perplexo: "O Terceiro Mundo (as favelas do Rio ou a periferia de São Paulo) explodindo no coração do país mais rico do mundo?".
De lá para cá, isso se tornou trivial, embora essa violência não tenha a mesma intensidade (quem poderia imaginá-lo?) do que aquela exercida pelo Império em qualquer lugar do planeta que ponha obstáculos a seus interesses econômicos (principalmente o petróleo). Los Angeles, periferia de Paris... tudo isso são eventos que se sucedem cada vez mais rapidamente, como que prontos para surpreender ou espantar um coração brasileiro.
Então essa barbárie não seria privilégio nosso? Universalizamos as favelas? Felizmente, não nos cabe a iniciativa (embora sejamos cada vez mais vítimas dela), mas, sim, à figura atual do capital. Não é necessário ser marxista para reconhecer, com a melhor sociologia e a melhor economia americanas, que a globalização significou, mais do que o triunfo do neoliberalismo, um gigantesco retrocesso, uma "brasilianização" do centro da economia e da vida global.
Antes de receber a pergunta da Folha, enviara-me meu colega Jean-François Mattei, filósofo francês, um artigo publicado parcialmente no jornal "Le Figaro" onde, comentando os eventos de 27/10, em Clichy-sous-Bois, insiste em quatro tópicos: a banalização da violência, a deformação da língua, a renúncia do Estado e a demissão das elites responsáveis. Depois de recebê-la, reli um ensaio de outro filósofo, brasileiro este, Paulo Arantes, publicado em 2001.
De um lado, meu amigo francês, insistindo com razão sobre as distorções semânticas dos discursos sobre os eventos, não se demora sobre o vocabulário de Sarkozy, que denomina a população periférica de Paris como a canalha, numa retórica ao gosto de Le Pen. De outro, meu amigo brasileiro, cinco anos antes dos eventos em pauta, mostra como eram estruturalmente inevitáveis, baseado em enorme bibliografia: textos de cientistas sociais franceses escritos na última década do século 20.
Minha razão me obriga a ficar mais do lado de Paulo Arantes. Depois de ouvir a voz da razão, tenho que responder "não" à pergunta. Embora, como se trata da França, terra de Pascal, não possa esconder que a voz do coração me levaria a um pouco mais de esperança.


Bento Prado Jr. é filósofo, professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos (SP) e professor emérito da USP. É autor de "Presença e Campo Transcendental", entre outros livros.


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