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TENDÊNCIAS/DEBATES
Repressão e políticas sociais resolvem
o problema dos distúrbios na França?
NÃO
A França e a "brasilianização" do mundo
BENTO PRADO JR.
"C'est la canaille? Eh bien j'en suis!"
("É a canalha? Pois bem, a ela pertenço!",
de uma canção da Revolução Francesa)
Comecemos por notar a tensão interna da pergunta. Não seria melhor indicar a alternativa entre medidas
repressivas e políticas sociais? Que a solução da crise, no limite, seja impossível,
parece evidente, embora seja previsível,
a curto prazo, o fim do surto atual.
Esqueçamos a utilidade eventual de
medidas repressivas, já que a escolha da
"tolerância zero" de Sarkozy contra a
"racaille" (canalha) parece antes provocar do que neutralizar o problema. Fiquemos apenas nos efeitos possíveis das
desejadas e necessárias políticas sociais.
Mas, mesmo aí, o otimismo não parece
ter cabimento: embora não devamos
responder à pergunta de maneira totalmente negativa, como fez Adorno face
ao livro de Ernst Bloch, "O Princípio Esperança", quando enunciou a famosa e
sinistra frase: "Não há esperança".
Restrinjamo-nos, portanto, a uma
única questão: "É possível, ao governo
da França, estabelecer uma política social que elimine a reiteração dos distúrbios atuais, neutralizando as causas que
os determinam?".
Guardando toda a esperança, é preciso reconhecer que a última globalização
da economia e da sociedade (outras
houve, desde o início da história moderna) determinou uma forte limitação do
poder dos Estados nacionais. Se ainda
fossem possíveis políticas econômicas e
sociais por livre iniciativa das nações,
por que há tanto tempo se insiste em
projetos como os da União Européia e
do Mercosul?
O estabelecimento do Império, com o
fim do "socialismo real", a contrapelo
das expectativas otimistas do ideólogo
Fukuyama, não culminou no fim da
história e no início da paz absoluta. Deu,
até mesmo, início à universalização do
conflito ou de uma guerra permanente
(bem diferente da revolução permanente de Trótski!). A mudança foi profunda, como prova o fato de que um Bush
seria inimaginável como presidente dos
EUA no século passado (não temos espaço, aqui, para falar do Reagan).
De qualquer maneira, no novo mundo globalizado, é impossível imaginar
uma grande cidade dos países avançados (ou do centro do capitalismo) que
não tenha importado do Terceiro ou do
Quarto Mundo uma larga população
que passou a cercá-la como perigosa periferia. Tudo se passa como se a antiga
oposição entre centro e periferia, entre
países avançados e atrasados, tivesse sido interiorizada pelo próprio centro.
Lembro-me de meu espanto, há mais
ou menos uma década, com a insurreição dos negros em Los Angeles. Eu me
perguntava, perplexo: "O Terceiro
Mundo (as favelas do Rio ou a periferia
de São Paulo) explodindo no coração
do país mais rico do mundo?".
De lá para cá, isso se tornou trivial,
embora essa violência não tenha a mesma intensidade (quem poderia imaginá-lo?) do que aquela exercida pelo Império em qualquer lugar do planeta que
ponha obstáculos a seus interesses econômicos (principalmente o petróleo).
Los Angeles, periferia de Paris... tudo isso são eventos que se sucedem cada vez
mais rapidamente, como que prontos
para surpreender ou espantar um coração brasileiro.
Então essa barbárie não seria privilégio nosso? Universalizamos as favelas?
Felizmente, não nos cabe a iniciativa
(embora sejamos cada vez mais vítimas
dela), mas, sim, à figura atual do capital.
Não é necessário ser marxista para reconhecer, com a melhor sociologia e a melhor economia americanas, que a globalização significou, mais do que o triunfo
do neoliberalismo, um gigantesco retrocesso, uma "brasilianização" do centro da economia e da vida global.
Antes de receber a pergunta da Folha,
enviara-me meu colega Jean-François
Mattei, filósofo francês, um artigo publicado parcialmente no jornal "Le Figaro" onde, comentando os eventos de
27/10, em Clichy-sous-Bois, insiste em
quatro tópicos: a banalização da violência, a deformação da língua, a renúncia
do Estado e a demissão das elites responsáveis. Depois de recebê-la, reli um
ensaio de outro filósofo, brasileiro este,
Paulo Arantes, publicado em 2001.
De um lado, meu amigo francês, insistindo com razão sobre as distorções semânticas dos discursos sobre os eventos, não se demora sobre o vocabulário
de Sarkozy, que denomina a população
periférica de Paris como a canalha, numa retórica ao gosto de Le Pen. De outro, meu amigo brasileiro, cinco anos
antes dos eventos em pauta, mostra como eram estruturalmente inevitáveis,
baseado em enorme bibliografia: textos
de cientistas sociais franceses escritos
na última década do século 20.
Minha razão me obriga a ficar mais do
lado de Paulo Arantes. Depois de ouvir
a voz da razão, tenho que responder
"não" à pergunta. Embora, como se trata da França, terra de Pascal, não possa
esconder que a voz do coração me levaria a um pouco mais de esperança.
Bento Prado Jr. é filósofo, professor de filosofia
na Universidade Federal de São Carlos (SP) e
professor emérito da USP. É autor de "Presença e
Campo Transcendental", entre outros livros.
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