São Paulo, sexta-feira, 13 de fevereiro de 2004

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JOSÉ SARNEY

Garoa do meu São Paulo

Como os paulistas, tenho as minhas nostalgias nestes 450 anos de São Paulo. Vi a cidade, pela primeira vez, em 1950, no Congresso da UNE, realizado no auditório do Hospital das Clínicas, quando os arranha-céus pipocavam e a velha vila de Piratininga procurava evitar sua morte nos espaços que se escondiam nos velhos bairros. Tive minhas noitadas de estudante na major Sertório e experimentei o fascínio da visão vertical nos miradouros do alto dos prédios.
Na minha cabeça, estava a poesia do São Paulo da garoa, os versos da "Paulicéia Desvairada", de Mário de Andrade, memorizados quase todos.
Em São Paulo, estudaram meus filhos, um deles orgulhoso da sua escola, a Politécnica. Em São Paulo fiz grandes amizades, das maiores da minha vida, que floresceram em afeto -e cito como síntese de todas a mais antiga e a mais paulista, Roberto de Abreu Sodré, estima que se derramou no querer bem que passou para os nossos filhos.
São Paulo tem um jeito diferente no cultivo do gosto da convivência. Como as tentações de lazer não são perdulárias, há no paulista o gosto do encontro, o contato de pessoa a pessoa. A arte de comungar afetos, de trocar histórias e problemas. A cidade criou esse interlúdio de explorar ao máximo o prazer de conviver, de estar junto. O jeito brasileiro de "quero te ver", que é apenas uma fórmula de cortesia que não diz nada, no paulista é vontade mesmo.
Até mesmo a chuva ajuda esse hábito. Diz-se que a cidade foi fundada por Anchieta nesse platô porque aí chovia muito. Então o jesuíta resolveu fazer barracões para passar a chuva. Como a chuva não passou, teve de fazer uma cidade.
São Paulo é uma cidade sob o signo da metamorfose, sempre em transformação, que não tem medo de mudar mesmo seus elementos mais representativos. Claude Lévi-Strauss, um dos fundadores da USP, mergulhado nas pesquisas antropológicas que resultaram em "Tristes Trópicos" e no estruturalismo, guardou a eterna memória da cidade que não pára.
Ao pesquisar para o importante livro sobre Blaise Cendrars (Fayard), Jérôme Michaud-Larivière tentou retraçar os itinerários do poeta, hóspede de Paulo Prado na época do modernismo. Quase ficou louco. As casas onde moraram Oswald de Andrade, Tarsila, Mário já não existiam. Os arranha-céus que foram erguidos em seus lugares não têm nem mesmo referência a eles. Não ficou vestígio da Vila Kyrial, onde o mecenas Freitas Valle acolhia escritores e artistas de bolsos vazios, famintos, mas sobejando imagens e idéias. Não encontrou nem mesmo o portão de madeira da casa de Paulo Prado, junto ao qual Cendrars passou uma noite na companhia do velho Capistrano de Abreu, confundidos ambos pelo vigia com vagabundos.
Permanece vivo na alma do povo o orgulho paulista dessa modernidade arquitetônica que impressionou Levi-Strauss, Cendrars e outros monstros sagrados, como Braudel, Bastide, Perroux e Monbeig, que amaram a cidade.
Vejo São Paulo com os olhos eternos de quem tem amizade, empatia e afeto pela cidade. Vejo-a sempre num sentimento que é um misto de transformação e de nostalgia da saga dos emigrantes, das revoluções constitucionais, da mocidade rebelde a lutar pela República e da lembrança do burgo em que o padre Rui Pereira via, "no de dentro e no de fora, o Brasil".


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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