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JOSÉ SARNEY
Garoa do meu São Paulo
Como os paulistas, tenho as
minhas nostalgias nestes 450 anos
de São Paulo. Vi a cidade, pela primeira vez, em 1950, no Congresso da
UNE, realizado no auditório do Hospital das Clínicas, quando os arranha-céus pipocavam e a velha vila de Piratininga procurava evitar sua morte
nos espaços que se escondiam nos velhos bairros. Tive minhas noitadas de
estudante na major Sertório e experimentei o fascínio da visão vertical nos
miradouros do alto dos prédios.
Na minha cabeça, estava a poesia do
São Paulo da garoa, os versos da "Paulicéia Desvairada", de Mário de Andrade, memorizados quase todos.
Em São Paulo, estudaram meus filhos, um deles orgulhoso da sua escola, a Politécnica. Em São Paulo fiz
grandes amizades, das maiores da minha vida, que floresceram em afeto
-e cito como síntese de todas a mais
antiga e a mais paulista, Roberto de
Abreu Sodré, estima que se derramou
no querer bem que passou para os
nossos filhos.
São Paulo tem um jeito diferente no
cultivo do gosto da convivência. Como as tentações de lazer não são perdulárias, há no paulista o gosto do encontro, o contato de pessoa a pessoa.
A arte de comungar afetos, de trocar
histórias e problemas. A cidade criou
esse interlúdio de explorar ao máximo
o prazer de conviver, de estar junto. O
jeito brasileiro de "quero te ver", que é
apenas uma fórmula de cortesia que
não diz nada, no paulista é vontade
mesmo.
Até mesmo a chuva ajuda esse hábito. Diz-se que a cidade foi fundada por
Anchieta nesse platô porque aí chovia
muito. Então o jesuíta resolveu fazer
barracões para passar a chuva. Como
a chuva não passou, teve de fazer uma
cidade.
São Paulo é uma cidade sob o signo
da metamorfose, sempre em transformação, que não tem medo de mudar
mesmo seus elementos mais representativos. Claude Lévi-Strauss, um
dos fundadores da USP, mergulhado
nas pesquisas antropológicas que resultaram em "Tristes Trópicos" e no
estruturalismo, guardou a eterna memória da cidade que não pára.
Ao pesquisar para o importante livro sobre Blaise Cendrars (Fayard),
Jérôme Michaud-Larivière tentou retraçar os itinerários do poeta, hóspede
de Paulo Prado na época do modernismo. Quase ficou louco. As casas
onde moraram Oswald de Andrade,
Tarsila, Mário já não existiam. Os arranha-céus que foram erguidos em
seus lugares não têm nem mesmo referência a eles. Não ficou vestígio da
Vila Kyrial, onde o mecenas Freitas
Valle acolhia escritores e artistas de
bolsos vazios, famintos, mas sobejando imagens e idéias. Não encontrou
nem mesmo o portão de madeira da
casa de Paulo Prado, junto ao qual
Cendrars passou uma noite na companhia do velho Capistrano de Abreu,
confundidos ambos pelo vigia com
vagabundos.
Permanece vivo na alma do povo o
orgulho paulista dessa modernidade
arquitetônica que impressionou Levi-Strauss, Cendrars e outros monstros
sagrados, como Braudel, Bastide, Perroux e Monbeig, que amaram a cidade.
Vejo São Paulo com os olhos eternos
de quem tem amizade, empatia e afeto
pela cidade. Vejo-a sempre num sentimento que é um misto de transformação e de nostalgia da saga dos emigrantes, das revoluções constitucionais, da mocidade rebelde a lutar pela
República e da lembrança do burgo
em que o padre Rui Pereira via, "no de
dentro e no de fora, o Brasil".
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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