São Paulo, sexta-feira, 13 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

TV pública: independência ou morte

JORGE DA CUNHA LIMA

Conheci Greg Dyke, o diretor-geral da BBC, no almoço oferecido aos indicados para o Emmy, no qual ele foi o orador principal. Perguntaram-lhe: "Por que a BBC recebe 2,8 bilhões de libras por meio de taxações da sociedade?". Ele respondeu: "Para produzir a televisão de qualidade que vocês não têm vontade de produzir, apesar de todo o dinheiro do mercado".
A reportagem de Andrew Gilligan, o suicídio de David Kelly e o julgamento político de lorde Brian Hutton, nomeado por Blair para absolvê-lo e condenar a BBC, como fez, levou Greg a demitir-se. Não importa se a BBC não conseguiu aprofundar a verdade dos fatos até o limite de uma explicação convincente, como gostaria John Lloyd, editor do "Financial Times". Acontece que, desde a questão das Malvinas, quando a emissora se opôs à guerra de lady Tatcher, até a Guerra do Iraque, em que se opôs a Tony Blair, a BBC é a única emissora européia capaz de revelar o contraditório. E Greg Dyke foi um defensor notável dessa independência.


A sentença [contra a BBC] coroa uma ação lenta e persistente contra a independência da televisão pública


A sentença coroa uma ação lenta e persistente contra a independência e, mesmo, pela extinção da televisão pública. Vejamos.
Jean Pierre Cottet, presidente da Cinquième, televisão educativa francesa, e da Aited (Associação Internacional de Televisões Educativas e da Descoberta), foi exonerado do comando do canal. Conheço-o bem, como vice-presidente que sou da Aited, e posso testemunhar que foi um dos melhores presidentes que a Cinquième já teve.
A televisão educativa da Austrália vai ser fechada, por pressão de Murdoch sobre o governo.
Berlusconi enviou proposta de lei ao parlamento italiano pedindo autorização para privatizar a RAI. Ele, que já tem o monopólio da rede privada, talvez queira incluir a rede pública italiana no mesmo pacote ideológico.
A PBS, Public Broadcasting Service, dos Estados Unidos, foi ameaçada no fim do ano passado de sofrer uma redução de 50% na contribuição dada pelo National Endowment.
Em toda parte torna-se difícil a compreensão de uma televisão que baseia seu relacionamento com a sociedade na independência diante do mercado e dos governos. Mas isso é indispensável para que não baixem os padrões de qualidade, pela pressão da audiência, e para que a televisão seja uma expressão pluralista das forças sociais, e não um diário oficial dos governos.
A luta em defesa da televisão pública é urgente e imprescindível. É uma luta da sociedade, a quem ela se destina; do Estado, que é a representação política dessa sociedade; da imprensa, que é a representação mais razoável das realidades; dos artistas e intelectuais, que são autores e protagonistas da divulgação indispensável do conhecimento.
Se os sintomas dos riscos são visíveis, suas causas mais profundas nem sempre são percebidas.
Nós todos submetemo-nos, no mundo atual, incondicionalmente ao espetáculo. Não só o gosto como os valores subordinam-se à lógica do espetáculo. Isso acontece em toda parte e de tal forma que, antes mesmo de "O Exterminador do Futuro 3" estrear, o herói já se tornara governador da Califórnia.
Espetáculo, isto é, diversão antes do conhecimento, é a base do maior negócio desenvolvido no século 20: informação transformada em show.
Não se trata de influência recente, apenas causada pela mídia globalizada. Desde o distante ano de 1821, nos Estados Unidos, o teatro de vaudeville declarou e ganhou a guerra contra o teatro shakespeareano . Em início de expansão, Nova York tinha apenas quatro teatros, mas funcionavam lá 80 botecos, com palcos para desabusados entretenimentos.
A cultura do popularesco, baseada inteiramente no entretenimento que envolvia divertimento para os sentidos, dominou as massas americanas em tal proporção que Gabler Neal, em seu livro "Vida, o Filme", afirma que "o ópio do povo não é a religião, como queriam os marxistas, mas o entretenimento".
A mídia tem uma clara preferência pelo espetáculo, embora quem mais o promova seja a própria realidade, sensacional, produzida pela política, pelas religiões, pela economia e pelas artes, principalmente o teatro, o cinema e a TV.
Longe os critérios gregos, que dividiam claramente os espaços da tragédia e da comédia. Hoje, quase tudo é dramalhão e pantomima, ambos consagrados nas medições do Ibope.
Com tal herança passada em julgado, não temos como reclamar da baixaria. Não podemos nos considerar alternativa -nem a TV Cultura, nem nenhuma outra televisão educativa. Como poderíamos, se o fator determinante do gosto é a oferta, e não a demanda, como proclamam os manipuladores do mercado? Como poderíamos, se a oferta do mau gosto e da baixaria predomina tanto na informação quanto no entretenimento?
A TV pública pode não ser uma alternativa, mas paradigma novo capaz de suscitar o espírito crítico do telespectador. Por isso mesmo nós insistiremos até o fim. Nós, membros da Aitec (Associação Internacional de Televisões Públicas e Culturais); nós, associados da Abepec (Associação Brasileira de Emissoras Públicas Educativas e Culturais); nós, diretores e funcionários da Cultura, lutaremos para defender uma estrutura jurídico-administrativa que confira independência às emissoras para produzir uma programação de qualidade, voltada para a sociedade.
O novo jornalismo público lançado pela TV Cultura busca ser a expressão informativa dessas idéias. Estamos apenas evoluindo, mas, com a crítica dos ouvintes, da mídia e de nossos colaboradores, seremos fiéis ao nosso manifesto e à nossa missão.

Jorge da Cunha Lima, 72, jornalista e escritor, é presidente da Fundação Padre Anchieta e da Abepec (Associação Brasileira de Emissoras Públicas Educativas e Culturais).


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