São Paulo, segunda-feira, 13 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os erros dos de baixo

EMIR SADER


Os palestinos são os vietnamitas do mundo contemporâneo; resistem à vida que as grandes potências lhes reservam


O s sem-terra erraram ao entrar na fazendo de FHC. Os palestinos erram ao fazer atentados contra a população civil em Israel. Esses erros têm que ser criticados. Não é porque a luta pela democratização do acesso à terra seja justa e os sem-terra sejam os protagonistas dessa luta que não devem ser criticados quando cometem erros.
Não é porque a elementar reivindicação de um Estado palestino seja a questão central a ser conquistada, para que seja possível uma paz justa e duradoura no Oriente Médio, que os palestinos não devam ser criticados quando erram.
Devem ser criticados, com a dureza que cada caso exige, principalmente porque sua luta representa o interesse das grandes maiorias e sua luta deve ser encaminhada da melhor maneira possível, para que essas grandes maiorias tenham seus interesses satisfeitos e a justiça possa se impor. Quando erram, prejudicam essas maiorias, que necessitam conquistar seus direitos -e por isso é tão importante a questão das formas corretas de luta por objetivos justos.
Devem ser criticados para que a justiça da reforma agrária no Brasil e da existência de um Estado palestino soberano se transforme em realidade. Por isso seus erros são graves e devem ser criticados, para que sejam corrigidos e superados. Porque são lutas justas é que devem ser criticadas, porque precisam triunfar e devem triunfar.
A campanha governamental, que conta com a ativa participação de grande parte da mídia, tenta fazer dos sem-terra agentes, e não vítimas, da violência. Quando reagem à violência, são transformados praticamente em introdutores da violência no campo no Brasil, sem os quais a paz no campo se instauraria.
Quando ocupam terras improdutivas, são transformados em perturbadores da produção que, sem eles, abasteceria as necessidades da população brasileira, com acesso de todos os que querem trabalhar à terra.
Em suma, uma covarde e monopolística campanha de imprensa faz daqueles mais pobres, mais excluídos, mais humilhados vítimas, quando tentam lutar por seus direitos. Quando lutam e o fazem como nunca, para conquistar a justiça no campo, ao fazer com que um milhão de pessoas estejam assentadas, trabalhando, com acesso à escola, com dignidade e espírito comunitário. Construíram o mais formidável sistema escolar público de acesso a todos, com qualidade e funcionamento real.
Defender os sem-terra, no seu projeto essencial de democratização do acesso à terra negado pelas elites brasileiras durante séculos, negação herdada pelo atual governo e seu comissário contra os sem-terra, o ministro, ex e agora anticomunista, é compromisso dos que lutam por uma sociedade justa e solidária. É nesse marco, dos que têm esse compromisso, que cabem as críticas aos erros dos trabalhadores sem terra, para que eles possam aprimorar suas formas de ação, seu discurso, a fim de que os objetivos por que lutam possam se impor e o Brasil avançar no caminho distante de uma sociedade justa e democrática.
Os palestinos são os vietnamitas do mundo contemporâneo, aqueles que resistem a e se rebelam contra a vida sem destino que as grandes potências, com os EUA e seu aliado aliado estratégico, Israel, lhes reservam. Eles lutam na mais bela e heróica gesta de resistência de um povo nas últimas décadas e são transformados, pela grande mídia, de vítimas em verdugos, de povo humilhado, espoliado, dominado, expropriado do direito elementar de ter um Estado próprio em agressores, "terroristas".
Se apelam para ações terroristas -de que são vítimas diárias, pela ocupação colonial de Israel- é porque acreditam que é o único instrumento pelo qual podem responder a todo o sofrimento que três décadas e meia têm lhes imposto. Deve-se discutir com eles sobre a legitimidade e a eficácia de um método como o de ações que vitimam a população civil de Israel, que deve mudar radicalmente sua forma de pensar e de sentir, para que uma paz duradoura e justa seja possível no marco de sua luta pelo direito a ter um Estado palestino reconhecido há décadas pela ONU, mas não pelos EUA e por Israel.
A crítica aos eventuais erros que os sem-terra e os palestinos por parte dos que se comprometem com a construção de um mundo melhor, mais humano -solidário portanto-, muito distinto daquele existente atualmente, dominado pelo dinheiro e pela força das armas e do monopólio midiático, é sobre formas de luta, prazos, aliados. Em suma, um debate num marco de fraternidade e de solidariedade, para que não se corra o risco de deslizar do ceticismo para o cinismo ou da divergência para o oportunismo eleitoral ou outro, mas sempre com os olhos voltados para o agrado dos que são os adversários, não apenas dos sem-terra e dos palestinos, mas de um outro mundo possível, solidário e humanista.
Se os sem-terra e os palestinos são culpados, eu não quero para mim essa inocência.


Emir Sader, 58, é professor de sociologia da USP e da Uerj. É autor de "Século 20: uma Biografia Não-Autorizada" (Perseu Abramo), entre outras.


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