São Paulo, segunda-feira, 13 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O STJ e a dor moral

TAÍS GASPARIAN


Se a indenização deve compensar a dor, ela também deve servir de desestímulo a outras atitudes nocivas


Diante da discrepância de critérios adotados na fixação do valor das indenizações por danos morais, o stj (Superior Tribunal de Justiça) tem tomado a corajosa iniciativa de avocar a si a decisão final da quantificação do dano moral.
Corajosa, porque, num país marcado por agudas desigualdades, conferir um valor pecuniário aos diversos tipos de dor moral não é uma tarefa fácil. Pelo contrário, é audaciosa e digna de um Tribunal Superior que está aí justamente para, dentre outras funções, conferir unidade jurídica à interpretação das leis federais e, consequentemente, ao emaranhado de decisões judiciais.
Diferentemente do dano material, que é matematicamente aferível, a avaliação do dano moral se apóia em parâmetros subjetivos. Quanto vale a dor pela morte trágica de um parente querido? Ou por se tornar de repente inválido? Valor nenhum paga a dor.
O sistema jurídico, ciente dessa dificuldade, criou um mecanismo que pretende compensar aquele que sofreu o dano moral. Entende-se que a indenização pode proporcionar ao ofendido um bem-estar psíquico compensatório da tristeza ou da ofensa. No entanto, o aspecto mais difícil dessa compensação reside na fixação do valor do dano. Embora existam alguns critérios teóricos que norteiem essa fixação, como a gravidade da dor, a capacidade financeira do causador do dano e a proporcionalidade entre um e outro, as indenizações têm sido as mais díspares -revelando uma sociedade sem critério de graduação de valores morais [."
Parece óbvio que a dor do filho menor que perdeu o pai, em decorrência de um ato ilícito, é provavelmente maior do que a daquele que foi ofendido em sua honra, e a deste mais grave do que aquele que teve um abalo em seu crédito, e assim sucessivamente. Mas os julgados nem sempre apresentam essa coerência.
Alguns exemplos: em razão de uma decisão judicial, os filhos menores de uma vítima daquele fatídico vôo da TAM foram indenizados, pela dor da perda do pai, em cem salários mínimos para cada um. O mesmo acidente gerou uma indenização de 500 salários mínimos para o pai de um outro passageiro. A esposa e os filhos menores de uma vítima fatal de um acidente ferroviário receberam, no total, indenização pelos danos morais no valor de 40 salários mínimos. Duzentos salários mínimos foi o valor recebido pelos danos morais por uma pessoa que sofreu um acidente que a invalidou para o trabalho. Uma servidora municipal, atacada sexualmente em um parque mantido e guardado pela municipalidade de São Paulo, recebeu cem salários mínimos.
Em contrapartida, um homem que sofreu uma agressão física, em um clube social, recebeu indenização no valor de 3.600 salários mínimos (R$720 mil). Um executivo, que teve sua imagem indevidamente veiculada em um anúncio, recebeu uma indenização de 500 salários mínimos (R$ 100 mil). E um juiz de direito, que teria sido injustamente apontado pela imprensa como manipulador de processos de adoção, moveu diversas ações e talvez receba, a título de indenização por danos morais, o valor de cerca de R$ 4 milhões da Rede Globo e R$ 800 mil da Revista "IstoÉ".
Fica a incógnita: a dor moral da pessoa que se tornou um aleijão vale menos do que a daquela que foi atingida em sua honra pelo noticiário? A dor dos parentes das vítimas do acidente da TAM vale menos do que a do executivo que teve sua imagem veiculada indevidamente?
Há centenas de outros exemplos que revelam a falta de critério na classificação de bens como vida, integridade física, honra, imagem, privacidade.
Há ainda outra questão. Observa-se no Brasil um perigoso processo de exacerbação no estabelecimento do "quantum" da indenização por dano moral, que não guarda nenhuma relação com nossa realidade econômica ou social. Num país em que metade da população ganha até dois salários mínimos, indenizações de milhões necessariamente provocam alguma reflexão.
Se a indenização deve compensar a dor, ela também deve servir de desestímulo a outras atitudes nocivas. Mas não pode ser superior à capacidade de quem paga, nem em valor despropositado. E os absurdos são de todos os tipos. A Folha já noticiou o caso de uma decisão judicial que condenou um pequeno jornal do interior de São Paulo a pagar 2.500 salários mínimos, um valor que arruinará a empresa e levará o empresário ao estado de inadimplência.
E há outro caso, em que uma viúva foi premiada com uma indenização, em primeira instância, de R$ 800 mil, só pelo fato de um jornal popular já extinto ter chamado de "playboy" seu marido, que acabara de falecer. Esse valor foi depois reduzido, pelo Tribunal de Justiça de SP, para R$ 4.000 -e nesse patamar confirmado pelo STJ. A disparidade é tamanha que chega a ser patético que uma indenização de R$ 800 mil ou de R$ 4.000 se refira a um mesmíssimo fato.
Não se nega que tenha havido uma evolução e tanto nesse campo. O medo da condenação fez com que muitas empresas tomassem cautelas que jamais cogitaram. Antes de 1988, o dano moral nem sequer estava previsto na Constituição, raramente era reconhecido nas decisões judiciais e, quando reconhecido, os valores de indenização eram irrisórios. De lá para cá, operou-se uma mudança radical e, tal qual nas grandes revoluções, em que todo avanço foi seguido por um exagero, faz-se necessário um pequeno recuo estratégico, até mesmo para que não se perca a conquista.
Na ausência de critérios padronizados para a fixação da indenização, o papel do STJ revela-se essencialmente controlador, para que sejam obedecidos critérios de equilíbrio. Na voz dos ministros que o integram, "o valor da indenização por dano moral não pode escapar ao controle do Superior Tribunal de Justiça".


Taís Gasparian é mestre pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP.


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