São Paulo, quinta-feira, 13 de junho de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Fantasias romanas

As declarações do megaespeculador George Soros a Clóvis Rossi deram feição nítida ao fantasma do "mercado financeiro", entidade invisível com peso cada vez mais determinante na política. Essa entidade, disse Soros, imporá a vitória de José Serra, sendo a alternativa o famoso caos. Como no tempo dos romanos, no mundo atual só vale o voto dos americanos.
Animado, talvez, pelo ambiente da celebração ou embriagado por seus investimentos no mercado de idéias, Soros trombeteou o que seus pares, inclusive a versão nacional, falam a portas fechadas. O efeito de sua intervenção parece bastante nocivo ao candidato do governo, mas ele não se importa, um pouco como Nero, já que o tema é Roma.
A metáfora dos Estados Unidos como Roma contemporânea tem aparecido cada vez com mais frequência à medida que se consolidou sua supremacia mundial quase inconteste. Devido às imensas diferenças de época e de grau de desenvolvimento, seu alcance como imagem é limitado, mas nem por isso se restringe ao mais evidente: o poder imperial.
A projeção da imagem dos dois impérios também os aproxima: duas nações republicanas com vocação expansionista e beligerante; duas civilizações tidas por pragmáticas e tecnológicas, cimentadas numa língua universal e num sistema econômico e numa máquina de guerra disseminados por todo o mundo conhecido; duas pátrias de advogados e de imigrantes.
O argumento de que só os americanos votam, "como em Roma", talvez mereça uma digressão. Pode-se discutir ao infinito as causas da decadência de Roma, assunto de uma extensa e embolorada bibliografia. Mas é certo que ela teria ocorrido bem antes não fosse a capacidade dos romanos de absorver populações e de transigir com poderes e costumes submetidos.
A cidadania romana foi estendida primeiro aos nativos da península itálica, depois aos habitantes de outras províncias do império; Paulo, judeu que vivia na periferia oriental, era cidadão romano. No segundo século da era Cristã já era normal que certos imperadores fossem originários de fora da Itália. O império se expandiu expandindo direitos.
Os Estados Unidos têm mostrado capacidade ainda maior de absorção migratória: a diversidade dos grupos que se submeteram à "mentalidade" americana é inédita. Depois da guerra, nos anos 50/60, os americanos estenderam sua "cidadania" à Europa, ao Japão e a alguns pequenos países do Extremo Oriente. Desde então, há 30 anos, esse acesso se mantém nos mesmos e acanhados limites geográficos.
Todo mundo sabe que será necessário estabelecer contrapesos ao excessivo predomínio americano e à sua contrapartida financeira no mundo da economia. O que parece acontecer é que a própria supremacia dessa configuração impede o surgimento de um bloco que a contenha, pois todos disputam a primazia de alianças preferenciais com o império.
Outra semelhança, talvez, com o poder romano. Este foi cristianizado antes de a metade ocidental cair de podre e a oriental se encastelar nas fronteiras helenísticas. A migração não tem sido capaz de solapar a sociedade americana por dentro, dando-lhe, ao contrário, seiva nova. Mas as ameaças externas são agora menos inofensivas que a aldeia de Asterix.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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