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CARLOS HEITOR CONY
A febre e a voz
RIO DE JANEIRO - Tive um irmão que morreu há pouco, bem mais moço do que eu e com uma escala de valores (ou desvalores) bem diversa da
minha. Nasceu em outubro, mas foi
solenemente batizado (e bota solenemente nisso) num dia 13 de junho,
dedicado a santo Antônio.
Não lembro o seu nascimento, embora já tivesse idade para lembrar
um evento desses numa família pequena. Mas lembro o batizado, para
mim a festa mais importante do século 20. O padrinho foi o médico Pedro Ernesto, que havia saído da prisão naqueles dias, pois fora detido
pelo Estado Novo. Prefeito do Rio,
considerado o maior dos prefeitos de
todos os tempos, correspondia-se com
Prestes e foi arrolado como comunista logo após o movimento de 1935.
O pai convidou-o para compadre e
fez maravilhosos balões para comemorar o batizado do filho e a libertação do amigo. Parece que a festa fez a
cabeça do inocente que se batizava
naquele dia. Todos os anos, já adultos, eu dando duro na pedreira do
jornalismo, ele me telefonava por essa época e pedia que eu largasse tudo
e que fosse com ele fazer balões, que
soltaríamos clandestinamente numa
ilha daqui da Guanabara.
Eu o esculhambava. Onde já se viu,
dois marmanjos, cheios de compromissos, largarem tudo para executar
uma contravenção penal. Decididamente, ele não tinha juízo -e nunca
teve. Morreu assim, dizendo o meu
nome, me chamando não sei se para
fazer balões ou para qualquer coisa
infantil e lúdica.
Fiquei acabrunhado, mais acabrunhado do que triste. Pensando bem,
ele tinha mais juízo do que eu. Deveria ter largado tudo para fazer o que
tínhamos vontade de fazer.
Como não cresceu o suficiente para
ser um homem de verdade, morreu
achando que eu poderia distraí-lo e
salvá-lo. Na rebordosa que se seguiu
à sua morte, peguei uma gripe brava,
tive um febrão durante a noite e tenho a certeza de que ouvia a sua voz
me chamando.
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