São Paulo, quinta-feira, 13 de junho de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

A febre e a voz

RIO DE JANEIRO - Tive um irmão que morreu há pouco, bem mais moço do que eu e com uma escala de valores (ou desvalores) bem diversa da minha. Nasceu em outubro, mas foi solenemente batizado (e bota solenemente nisso) num dia 13 de junho, dedicado a santo Antônio.
Não lembro o seu nascimento, embora já tivesse idade para lembrar um evento desses numa família pequena. Mas lembro o batizado, para mim a festa mais importante do século 20. O padrinho foi o médico Pedro Ernesto, que havia saído da prisão naqueles dias, pois fora detido pelo Estado Novo. Prefeito do Rio, considerado o maior dos prefeitos de todos os tempos, correspondia-se com Prestes e foi arrolado como comunista logo após o movimento de 1935.
O pai convidou-o para compadre e fez maravilhosos balões para comemorar o batizado do filho e a libertação do amigo. Parece que a festa fez a cabeça do inocente que se batizava naquele dia. Todos os anos, já adultos, eu dando duro na pedreira do jornalismo, ele me telefonava por essa época e pedia que eu largasse tudo e que fosse com ele fazer balões, que soltaríamos clandestinamente numa ilha daqui da Guanabara.
Eu o esculhambava. Onde já se viu, dois marmanjos, cheios de compromissos, largarem tudo para executar uma contravenção penal. Decididamente, ele não tinha juízo -e nunca teve. Morreu assim, dizendo o meu nome, me chamando não sei se para fazer balões ou para qualquer coisa infantil e lúdica.
Fiquei acabrunhado, mais acabrunhado do que triste. Pensando bem, ele tinha mais juízo do que eu. Deveria ter largado tudo para fazer o que tínhamos vontade de fazer.
Como não cresceu o suficiente para ser um homem de verdade, morreu achando que eu poderia distraí-lo e salvá-lo. Na rebordosa que se seguiu à sua morte, peguei uma gripe brava, tive um febrão durante a noite e tenho a certeza de que ouvia a sua voz me chamando.


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