São Paulo, quinta-feira, 13 de junho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

História sem memória

MARCO AURÉLIO GARCIA

Ainda bem que Boris Fausto, em sua coluna "Para não esquecer" (Folha, pág. A2, 3/6), anuncia claramente em que condição escreveu seu artigo de crítica ao Partido dos Trabalhadores. Não se trata do historiador que conhecemos e de quem se esperaria rigor pelo menos no uso de suas fontes. Ele mesmo esclarece falar como "adversário" assumido do PT, ainda que precisando haver votado no passado em Lula (contra Collor) e em Marta Suplicy (contra Maluf). Mas os petistas também votaram por duas vezes em Covas e até mesmo em Fleury.
Melhor que se apresente assim, pois um historiador, por mais "adversário" que fosse do PT, não poderia repetir a informação errada de que o partido é pela suspensão do pagamento do serviço da dívida externa, proposta rejeitada nos programas de governo de Lula de 1989, 94, 98 e nas Diretrizes Programáticas para 2002.
Fausto informa também, erradamente, seus leitores quando escreve que as palavras de ordem "Fora FHC" foram "promovidas por todos os setores do PT". Uma simples pesquisa de imprensa mostraria que essa tese, apesar de defendida por alguns delegados, foi rejeitada no 10º Encontro do partido. Repetir e repetir inverdades, até que se transformem em verdades, não deveria fazer parte dos procedimentos de um historiador, menos ainda de um democrata.
O resto do artigo de Boris reproduz as opiniões com as quais os tucanos se comprazem em exibir sua superioridade intelectual e política sobre os pobres mortais que compõem o resto da sociedade brasileira. Para Boris, por exemplo, o PT seria "incapaz de compreender as novas realidades do país e do mundo e de eleger prioridades".
O articulista não se pergunta se é possível que o Partido dos Trabalhadores compreenda o mundo e o país de forma distinta da sua e, por essa razão, defina outras prioridades, como o combate às desigualdades sociais, que marcam nossa sociedade secularmente, ou a defesa da soberania nacional, cada dia mais ameaçada, para citar só duas velharias.
Essa atitude não é nova. Durante os oito anos do tucanato, a dissidência intelectual e política do país foi tratada de "jurássica", "neoboba" e outras qualificações que pouco convidavam ao diálogo. É certo que os petistas nunca acreditamos, como Fernando Henrique afirmou, que a humanidade estivesse vivendo no limiar de "um novo Renascimento", que propiciaria ao Brasil uma integração internacional competitiva e soberana no mundo.


Existem momentos em que alianças podem e devem ser feitas em nome de objetivos nacionais mais amplos


Nossas prioridades sempre incluíram o combate à inflação, mas não à custa de oito anos de estagnação ou crescimento medíocre do PIB, de um aumento estarrecedor da dívida pública, de juros escorchantes, da sobrevalorização cambial que levou à degradação do comércio exterior, do sucateamento da indústria, da entrega lesiva do patrimônio nacional. Não estão, tampouco, nas prioridades do PT submeter o país a uma vulnerabilidade externa sem precedentes, como a que vivemos hoje e que inquieta investidores e especuladores bem mais do que o propalado "risco Lula".
O PT não precisa de lições de austeridade fiscal, pois a pratica em suas administrações municipais e estaduais, mas acredita ser seu dever advertir o país sobre a pesada herança econômica e sobretudo social que FHC legará a seu sucessor, aí incluindo a ruptura do pacto federativo.
Os intelectuais tucanos sempre foram pródigos em críticas pela suposta incapacidade do partido em ter uma política ampla de alianças. Agora, quando o Partido dos Trabalhadores busca uma aproximação com o PMDB de Pedro Simon, Requião e Quércia, dentre outros, consciente de que a gravidade do quadro nacional exige um alargamento da base de sustentação de um futuro governo, os tucanos, aliados de Jader Barbalho, Geddel, Maluf, Roberto Jefferson e tantos outros varões ilustres que formam a reserva moral do país, indignam-se.
Vou pesquisar na coleção da Folha em quantos artigos Boris Fausto criticou, no passado, os outdoors em que FHC aparecia ao lado de Maluf, ironicamente colocados nas ruas de São Paulo ao lado daqueles em que o então presidente candidato figurava apoiando Mário Covas. Tentarei exumar igualmente quantas críticas fez ao conluio FHC-ACM e outros "modernos" do PFL.
Desconfio de que nada encontrarei. Talvez possa deparar com doutas notas de outro intelectual tucano, mais audaz, expondo teorias "pendulares" sobre a necessidade de se aliar a setores arcaicos para chegar à modernidade.
Não há "silêncio obsequioso" dos que cercam Lula a respeito de uma possível aliança com o PMDB. Há a compreensão de que existem momentos na vida de um país em que alianças podem e devem ser feitas em nome de objetivos nacionais mais amplos, sem que elas impliquem conluio, troca de favores e de cargos e as incontáveis "operações abafa" que marcaram os últimos oito anos da vida política nacional, quando a governabilidade foi negociada no dia-a-dia, a tabela de preços dessa negociação cara e os resultados para o país pífios.
Essa é a pesada herança que Fernando Henrique deixará ao país. Um historiador sério, como Boris Fausto, pode sofrer as tentações da paixão política, mas deveria seguir os conselhos do marqueteiro de José Serra, Nizan Guanaes, e orientar seus escritos mais pela razão.


Marco Aurélio Garcia, 60, professor do Departamento de História da Unicamp, é secretário de Cultura do município de São Paulo e membro da Executiva Nacional do PT.



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