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São Paulo, sexta-feira, 13 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A responsabilidade dos cientistas

CELSO FURTADO

Se a excelência de um cientista resulta do binômio imaginação e coragem, há momentos em que se amplia por sua atuação no plano político, pela responsabilidade de interferir no processo histórico.
As ciências sociais são das mais sujeitas a influências ideológicas. Podem servir de cimento ao sistema de dominação social vigente e até mesmo para justificar abusos de poder. Daí serem imperativas na sociedade a responsabilidade moral dos cientistas e a prevalência dos compromissos éticos. Na área que me é familiar, a economia, verifica-se um empenho em buscar o formalismo, em adotar métodos que fizeram a glória das ciências ditas exatas. Ora, o objeto de estudo das ciências sociais nem sempre é perfeitamente definido, é algo em formação, criado pela vida em sociedade.
Disso me dei conta cedo, ao me debruçar sobre os problemas do desenvolvimento econômico. Com efeito, já o conceito de desenvolvimento nos obriga a entender que o homem é um fator de transformação, agindo tanto sobre o contexto social e ecológico como sobre si mesmo. Por isso a reflexão sobre o desenvolvimento traz em si uma teoria do ser humano, uma antropologia filosófica. É natural que se espere dos cientistas sociais, e dos economistas em particular, respostas às questões que mais afligem o nosso povo. Como tudo o que é humano tem uma dimensão social, esses problemas só podem ser apreciados no contexto das variáveis políticas, portanto, do poder e dos valores.
Analisando o momento histórico atual, parece-me óbvio que a tendência persistente de nossa economia ao desequilíbrio interno e externo decorre das condições de entrosamento internacional dos sistemas produtivos e dos circuitos financeiros. Estaremos diante de um agravamento desses desequilíbrios, com sérias implicações externas? É sabido que, nos países desenvolvidos, as condições básicas de vida são cada vez mais homogêneas, enquanto no mundo subdesenvolvido são mais e mais heterogêneas. Em seu avanço veloz, a integração política planetária vem reduzindo drasticamente a ação regulatória dos Estados nacionais.
Nesse quadro é que devemos pensar a inflação crônica que marca nossa economia e leva governos a praticarem uma política recessiva de elevado custo social. Os economistas tendem a reduzir a questão a uma simples dicotomia entre contração de demanda monetária e expansão fomentada da oferta de bens e serviços. Mas qualquer solução proposta exige mudanças profundas na distribuição da renda, objetivo que tem se demonstrado difícil de alcançar. Ademais, tenhamos em conta que, no campo da política econômica, muitas variáveis dependem de decisões tomadas fora do país. Levando o raciocínio ao extremo, o espaço de manobra de um governo pode ser tão restrito que o acabe privando de fazer política econômica, em razão dos compromissos com credores externos, e o force a adotar uma moratória de sérias projeções políticas.


O domínio avassalador da razão técnica limita cada vez mais o espaço de ação das criaturas


Escapa-nos a lógica do processo de globalização; não conseguimos controlar seus fundamentos nem dirimir dúvidas essenciais, apesar dos fantásticos avanços das técnicas da informação. Essa pouca transparência do processo que vivemos, a que chamamos de aceleração do tempo histórico, revela a ação de fatores que fogem ao nosso entendimento. Já são raros os sistemas econômicos nacionais dotados de autonomia. Os mercados mais relevantes, como os de tecnologia de vanguarda e de serviços financeiros, são hoje globalizados.
Mas esse é um processo aberto. O que acontecerá em cada país dependerá substancialmente de seu povo e de seu governo. Na Europa Ocidental, os países estão empenhados na mais rica experiência de cooperação política e integração dos mercados de fatores, o que implica um esforço financeiro comum para reduzir as desigualdades.
Pretensamente com o mesmo propósito de mobilizar recursos políticos para colher vantagens econômicas, os Estados Unidos tomaram a iniciativa de integrar, sob seu comando, as economias do hemisfério Ocidental. No caso singular do Canadá, a integração dá continuidade a um processo histórico. Mas, na América Latina, e em particular no Brasil, esse plano de integração continental reveste-se de maior gravidade. Com efeito, caso aceite firmar o acordo que acena com uma suposta integração entre iguais, o Brasil estará firmando um compromisso entre desiguais, pois quem o lidera é a maior potência econômica, política e militar do mundo.
É evidente a assimetria entre os futuros co-signatários do projeto conhecido como Alca, que estabelece regras comuns para um espectro abrangente de atividades. Em outras palavras, o plano acarreta clara perda de soberania para o Brasil, que terá de renunciar a um projeto próprio de desenvolvimento, abdicar de uma política tecnológica independente e esfacelar o seu já fragilizado sistema industrial.
Se o modelo de integração européia objetiva homogeneizar os padrões de desenvolvimento de seus membros, permitindo a mobilidade de mão-de-obra, a Alca, ao contrário, exclui toda a possibilidade de fluxos migratórios. E, mesmo que não excluísse, seria tão prejudicial para o nosso país que, parodiando às avessas o famoso escritor que fugiu do nazismo e veio se suicidar entre nós, poderíamos proclamar: o Brasil é um país sem futuro.
Faço essas reflexões para enfatizar nossa responsabilidade coletiva na construção de um Brasil melhor. Cabe a nós, intelectuais e cientistas, balizar os caminhos que percorrerão as gerações futuras. O domínio avassalador da razão técnica limita cada vez mais o espaço de ação das criaturas. A história, insisto, é um processo aberto, e o homem é alimentado por um gênio criativo que sempre nos surpreenderá. Resta-nos velar para que a chama criativa se mantenha acesa e ilumine as áreas mais nobres do espírito humano.

Celso Furtado, 82, economista, é membro da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento (Unesco). Foi ministro do Planejamento (governo João Goulart) e da Cultura (governo Sarney). É autor de "Formação Econômica do Brasil", entre outras obras.


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