São Paulo, sexta-feira, 13 de junho de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES A responsabilidade dos cientistas
CELSO FURTADO
Escapa-nos a lógica do processo de globalização; não conseguimos controlar seus fundamentos nem dirimir dúvidas essenciais, apesar dos fantásticos avanços das técnicas da informação. Essa pouca transparência do processo que vivemos, a que chamamos de aceleração do tempo histórico, revela a ação de fatores que fogem ao nosso entendimento. Já são raros os sistemas econômicos nacionais dotados de autonomia. Os mercados mais relevantes, como os de tecnologia de vanguarda e de serviços financeiros, são hoje globalizados. Mas esse é um processo aberto. O que acontecerá em cada país dependerá substancialmente de seu povo e de seu governo. Na Europa Ocidental, os países estão empenhados na mais rica experiência de cooperação política e integração dos mercados de fatores, o que implica um esforço financeiro comum para reduzir as desigualdades. Pretensamente com o mesmo propósito de mobilizar recursos políticos para colher vantagens econômicas, os Estados Unidos tomaram a iniciativa de integrar, sob seu comando, as economias do hemisfério Ocidental. No caso singular do Canadá, a integração dá continuidade a um processo histórico. Mas, na América Latina, e em particular no Brasil, esse plano de integração continental reveste-se de maior gravidade. Com efeito, caso aceite firmar o acordo que acena com uma suposta integração entre iguais, o Brasil estará firmando um compromisso entre desiguais, pois quem o lidera é a maior potência econômica, política e militar do mundo. É evidente a assimetria entre os futuros co-signatários do projeto conhecido como Alca, que estabelece regras comuns para um espectro abrangente de atividades. Em outras palavras, o plano acarreta clara perda de soberania para o Brasil, que terá de renunciar a um projeto próprio de desenvolvimento, abdicar de uma política tecnológica independente e esfacelar o seu já fragilizado sistema industrial. Se o modelo de integração européia objetiva homogeneizar os padrões de desenvolvimento de seus membros, permitindo a mobilidade de mão-de-obra, a Alca, ao contrário, exclui toda a possibilidade de fluxos migratórios. E, mesmo que não excluísse, seria tão prejudicial para o nosso país que, parodiando às avessas o famoso escritor que fugiu do nazismo e veio se suicidar entre nós, poderíamos proclamar: o Brasil é um país sem futuro. Faço essas reflexões para enfatizar nossa responsabilidade coletiva na construção de um Brasil melhor. Cabe a nós, intelectuais e cientistas, balizar os caminhos que percorrerão as gerações futuras. O domínio avassalador da razão técnica limita cada vez mais o espaço de ação das criaturas. A história, insisto, é um processo aberto, e o homem é alimentado por um gênio criativo que sempre nos surpreenderá. Resta-nos velar para que a chama criativa se mantenha acesa e ilumine as áreas mais nobres do espírito humano. Celso Furtado, 82, economista, é membro da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento (Unesco). Foi ministro do Planejamento (governo João Goulart) e da Cultura (governo Sarney). É autor de "Formação Econômica do Brasil", entre outras obras. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Nabil Bonduki: O cinema e a cidade Índice |
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