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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Mercosul, o desafio da credibilidade

RICARDO LAGOS

O mundo está olhando para o Mercosul com o interesse de quem contempla um novo processo em marcha. Há uma força diferente, uma certa energia derivada da liderança demonstrada pelos novos mandatários da região. E isso transmite entusiasmo a todos, membros e associados, sobre as possibilidades que o momento nos oferece de levar adiante uma política mais ampla. O Mercosul tem raízes. Mas, como temos dito desde que nos incorporamos às suas tarefas, a iniciativa que o embasa vai muito além de uma união aduaneira, por mais que esta seja importante. O Mercosul é um grande projeto histórico que entrou em uma fase de grandes coincidências.
Se existe uma visão nova quanto ao Mercosul, é hora de aproveitar esse momento para enviar ao mundo uma mensagem realista, de mostrar que assumimos essa oportunidade com os pés no chão. Para além das metas de longo prazo, daquele horizonte de integração profunda aonde um dia pretendemos chegar, vejamos o quanto se pode fazer agora para que sejamos atraentes no diálogo mundial e para que acreditem em nós. E isso deve ser impulsionado, em primeiro lugar, no âmbito político.
É um tempo de responsabilidade. E demonstramos que sabemos agir, nesse sentido. Aquilo que o presidente Lula fez para restabelecer a confiança dos mercados internacionais -e dos mercados de seu próprio país- no Brasil foi altamente benéfico não só para os brasileiros, mas para toda a região. Não só o risco-país do Brasil caiu, mas também o "risco-região". Todos deveríamos estar agradecidos por isso. Sem dúvida, o processo eleitoral na Argentina e a chegada do presidente Kirchner à Casa Rosada se enquadram na mesma lógica. Por isso surgem as vozes daqueles que dizem, de longe, que no sul da América Latina as coisas estão sendo conduzidas melhor do que se esperava.
Chegou a hora, portanto, de falarmos sério sobre os novos passos a encetar. Qual é a semelhança com a base a partir da qual, mais de 50 anos atrás, deu-se a largada ao que hoje conhecemos como União Européia? O que é a nossa "Comunidade do Carvão e do Aço"? É certo que os europeus hoje dispõem do euro e discutem uma constituição comum para o continente, mas tiveram de percorrer seu caminho. Devemos fazer o mesmo, com passos firmes e confiáveis. Há muitas áreas nas quais se pode começar a trabalhar com realismo e de maneira concreta. Vejamos algumas:


Se existe uma visão nova quanto ao Mercosul, é hora de aproveitar esse momento para enviar uma mensagem realista


Coordenação dos membros e associados do Mercosul com relação às políticas multilaterais no âmbito político, assim como no âmbito econômico;
dar impulso a políticas macroeconômicas comuns, com base nas quais se poderão estruturar acordos sobre inflação, déficit fiscal, política monetária e outros temas que definam as responsabilidades compartilhadas e as responsabilidades próprias em cada campo;
desenvolvimento de posições compartilhadas no âmbito da segurança, assumindo os novos desafios e perigos que afetam nossa região, e a vinculação entre eles e o resto do mundo;
harmonização das políticas em questões comerciais relacionadas a direitos de propriedade intelectual e seus derivados, em negociações com a OMC e tratados comerciais;
avanços na direção de uma política comum de defesa, com base nos acordos de zona de paz já alcançados, buscando uma homologação soberana dos gastos com a defesa e definindo políticas de coordenação regional;
desenvolvimento de políticas ambientais e defesa dessas políticas, tendo como referência as novas exigências de acesso aos mercados mundiais;
coordenação e execução dinâmica dos programas de infra-estrutura física, especialmente na perspectiva dos corredores bioceânicos e das relações entre o Mercosul e outras regiões do mundo;
desenvolvimento de tecnologias da informação e comunicação, na perspectiva do "espaço Mercosul", para o incremento dos recursos próprios no diálogo intra-regional e extra-regional.
O que devemos ter em mente é um entendimento político com letras maiúsculas, trabalhando por uma agenda que aumente a força do Mercosul em todos os âmbitos a que seremos convocados. Cada um de nós pode pôr em campo sua experiência específica.
O Chile negociou acordos comerciais com a Europa, com os EUA, com a Coréia do Sul. Nós o fizemos com base em uma visão de "regionalismo aberto" que nos leva a compreender precisamente, na região, o quanto foi possível alcançar e quanto será necessário negociar em outros âmbitos. Se, do lado de fora, avançamos em nossos acordos comerciais, está aqui o espaço a partir do qual fazemos nossa política externa.
Se chegarmos à próxima conferência do Mercosul, no Uruguai, com três ou quatro programas de trabalho muito precisos e já em curso, seremos vistos com outros olhos. Nosso desafio é o da credibilidade. Se pudermos dizer que "estamos coordenando políticas macroeconômicas", acreditarão em nós, porque o propósito de avançar com seriedade será visível. Levar-nos-ão em conta caso advirtamos que não confundimos as metas de longo prazo com a construção daquilo que está hoje ao nosso alcance. Toda muralha começa pela união dos primeiros tijolos.


Ricardo Lagos Escobar, 65, é presidente da República do Chile.


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