São Paulo, Sexta-feira, 13 de Agosto de 1999
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Precatórios: devo, não pago


O calote pregado por ACM significa a desmoralização da administração pública no país


RUBENS APPROBATO MACHADO

O calote dos precatórios pregado pelo senador Antonio Carlos Magalhães significa a desmoralização final da administração pública. O país nega-se a cumprir com suas obrigações e incorre no risco de falência moral. Em São Paulo, um cidadão de 95 anos ganhou na Justiça o direito de receber pelas horas noturnas trabalhadas. Como isso foi há 20 anos, a dívida cresceu para R$ 6 milhões. Esse montante é abusivo para o senador? E o não-pagamento ao trabalhador, que teve seus direitos violados? Na verdade, a proposta do calote oficial pode virar-se contra o administrador público, tornando-se um convite a que todos façam o mesmo. Será também uma desmoralização internacional do país. Se fazemos isso com os credores internos, o que não faremos com os externos?
Etimologicamente, precatório vem do latim "precatoriu"; o verbo precatar significa colocar de sobreaviso, prevenir, acautelar. No caso do direito processual civil, o Poder Judiciário roga ao Executivo que tome precauções orçamentárias para o pagamento de execução de ordem judicial, transitada em julgado e impossibilitada de ser modificada por recurso.
A Constituição, em seu art. 100, é explícita ao dar prioridade aos créditos de natureza alimentícia, salários e pensões em relação aos demais pagamentos devidos pela Fazenda federal, estadual e municipal e decorrentes de sentença judiciária, que seguem ordem cronológica de apresentação. A Carta prevê também que a conta dos débitos de precatórios judiciais deve ser apresentada até 1º de julho para inclusão no orçamento de entidade de direito público, estabelecendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte.
Tudo o que fugir desse procedimento é ilegal. É inadmissível que o administrador público desafie as decisões judiciais, transitadas em julgado, adiando os pagamentos -na maioria das vezes, de baixos valores, mas fundamentais para a sobrevivência de muitos cidadãos que tiveram suas casas desapropriadas, têm a receber diferenças salariais ou indenizações por acidentes de trabalho, morte, invalidez. O governo de São Paulo deve em precatórios cerca de R$ 10 bilhões (mas reconhece R$ 6 bilhões); a Prefeitura de São Paulo, R$ 1,1 bilhão.
O pagamento dos precatórios sempre foi uma questão difícil, uma vez que o Estado não é um credor comum. Está livre do mecanismo da penhora, e o pagamento depende mais da vontade política do ente público. No entanto o quadro nunca apresentou tanta dramaticidade quanto a registrada hoje, quando o retardamento dos pagamentos se ampliou. Estimava-se no começo do ano que, no ritmo com que o Estado estava efetuando os pagamentos, só quitaria os precatórios ao longo dos próximos 33 anos. Com a pressão da Justiça, as administrações estaduais e municipais começaram a buscar um acordo -politicamente enfraquecido pela proposta de calote oficial do senador Antonio Carlos Magalhães.
Os advogados têm convivido com o drama de seus clientes, vítimas do retardamento na liquidação dos precatórios. E podem atestar que essa omissão do Judiciário (e a consequente condescendência para com o Executivo) gera impactos sociais muito negativos. A OAB-SP deseja um Judiciário forte e independente, com inequívoca autoridade para fazer cumprir suas decisões. Ao Judiciário cabe garantir direitos; ao Executivo, cumprir seu papel, deixando de sobrepor os interesses políticos aos sociais, o que causa prejuízos morais e materiais à população.
A questão dos precatórios se transformou em uma barafunda; embora as ações tenham conseguido ultrapassar todos os entraves da Justiça brasileira (pouco célere e pouco eficiente), esbarram na incapacidade de fazer cumprir a lei. O que temos visto é uma negação continuada da cidadania: a sociedade tem de conviver, calada, com o calote do poder público. A situação só tende a piorar com a incorporação de novos precatórios. Centenas de credores já entraram com recursos no Supremo Tribunal Federal pedindo a intervenção federal em São Paulo, sem divisar nenhuma solução a curto ou médio prazo e dando uma conotação política ao problema. Eis mais um motivo para que o poder público apresente uma solução urgente à sociedade lesada.


Rubens Approbato Machado, 65, é presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo.



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