São Paulo, Sexta-feira, 13 de Agosto de 1999
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Montoro: exegese dos lugares-comuns


Seu sentimento pé-na-terra às vezes nos irritava, mas ele sabia onde o povo estava


JORGE DA CUNHA LIMA

Na missa de sétimo dia do governador Franco Montoro, seus filhos e netos leram pensamentos de sua autoria ou por ele adotados que refletem claramente o quanto Montoro pensou e viveu na busca do bem comum.
Creio que os leitores da Folha merecem essa coletânea de significados, sobretudo quando os lugares-comuns dos homens públicos andam tão distantes dos interesses dos cidadãos e da sociedade que temos a impressão de que eles é que envelheceram e morreram, e não o saudoso Montoro.
"Mais grave do que a miséria dos famintos é a inconsciência dos abastados." É evidente que, à exceção dos grandes momentos revolucionários e das democracias totalmente consolidadas, as classes dominantes são responsáveis pela condução da sociedade, pois detêm em suas mãos o sistema produtivo, o sistema financeiro, a mídia, os benefícios do conhecimento e o acesso à informação. A inconsciência dos abastados é, portanto, a grande miséria contemporânea.
"Para a América Latina, a opção é clara: integração ou atraso." Ouvi há tempos de Montoro que o Brasil esteve sempre voltado para o Atlântico, dando as costas para a América Latina. E que nós só seríamos uma grande nação quando pudéssemos estabelecer uma profunda relação cultural, política e econômica com os países da América Latina. Não são poucos os que se insurgem hoje contra a profecia de Montoro, inclusive os Estados Unidos.
"Teu dever é lutar pelo Direito, mas, no dia em que encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça." Não podia ser outro o pensamento do professor de introdução à ciência do direito. Num momento em que as burocracias judiciárias em todo o mundo, mas principalmente no Brasil, preferem o formalismo do Direito aos valores da Justiça, não é só a Justiça que se ressente, mas toda a sociedade.
"O importante é você se considerar um zé-ninguém a serviço de uma grande obra." Esse é o pensamento fundamental de Montoro. Por isso mesmo, Brasília nunca o contaminou. Nunca passou pela cabeça de Montoro um "você sabe com quem está falando?". Para ele, o importante era o interlocutor.
"Quando sonhamos sozinhos, é apenas um sonho; quando sonhamos juntos, é o começo de uma nova realidade." Poucas vezes na vida política me deparei com um conceito tão poético e tão verdadeiro da revolução: sonho jovem, sonho coletivo.
"A dívida externa de um país não poderá nunca ser paga à custa da miséria e da fome de seu povo." Dispenso-me de exegeses. O conceito é explícito.
"Entre o forte e o fraco, a liberdade oprime; é a lei que salva." Pouco antes de morrer, no aniversário da filha poeta, Montoro me disse que não se respeita mais a lei porque a infração foi muito banalizada. E o fraco sempre leva a pior se a lei não for respeitada.
"Se queres saber se estás no caminho certo, pergunta o que pensam de ti os pobres." Quando o neto Marcus Montoro leu essa frase, todo mundo na igreja abaixou a cabeça. A gente sempre vive querendo saber o que pensam de nós os poderosos de toda sorte, críticos, governantes, milionários. Mas é bem provável que a crítica deles nunca tenha levado ninguém ao céu.
"Ninguém vive na União ou no Estado; as pessoas vivem no município." Esse sentimento pé-na-terra de Montoro às vezes nos irritava -nós, que éramos do seu governo. Vivíamos fascinados com o brilho intelectual de Fernando Henrique. Mas Montoro sabia, como Milton Nascimento, onde o povo estava.
"Descentralizar é colocar o governo mais perto do povo e, por isso, torná-lo mais participativo, mais eficiente e mais democrático." Na primeira reunião do comitê de comunicação da campanha de Montoro para governador, ele abriu a mão e disse: "Participação, descentralização e geração de empregos. Essas são as minhas metas de governo". Notei que a mão tem cinco dedos, mas os três que ele indicou pareceram suficientes. Nunca aqueles três dedos foram tão necessários quanto hoje.
"As democracias modernas caminham para um presidencialismo participativo, que é a forma mais frequente do parlamentarismo." Essa foi a única frase de Montoro que não me pareceu sincera. O que ele queria mesmo era o parlamentarismo. Depois, inventou essa forma de presidencialismo participativo para não melindrar alguns amigos.
Quando a missa terminou, percebi que há alguns homens que chegam ao fim da vida; outros, à plenitude.


Jorge da Cunha Lima, 67, jornalista e escritor, é diretor-presidente da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura, e presidente da Abepec (Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativas e Culturais).



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