São Paulo, domingo, 13 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Cuba e os furacões

CELSO LAFER


Nas águas procelosas em que hoje navegamos, visitar Cuba equivale a uma lição de realismo e utopia

Em 1960 , pouco antes de viajar ao Brasil acompanhado por Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre esteve em Cuba para testemunhar os primeiros passos da revolução comandada por Fidel Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos. A visita está relatada numa série de reportagens publicadas no Brasil sob o título "Furacão sobre Cuba". A imagem do furacão aí representava, simbolicamente, as mudanças que começavam a se processar na vida do país.
A recente visita que realizei a Cuba, a convite do chanceler Felipe Pérez Roque, esteve ameaçada pela passagem do furacão Isidore pelo Caribe. Diferentemente do furacão sartreano, no entanto, Isidore não era uma tormenta metafórica. Representava, sim, uma ameaça real que trazia consigo promessa de devastação semelhante àquela provocada em 2001 pelo furacão Michelle.
A ameaça, felizmente, não se concretizou. Isidore desviou-se do rumo inicialmente previsto, causando apenas estragos menores em algumas plantações na costa Oeste de Cuba, antes de se deslocar para a península de Yucatán e para a costa da Louisiana, onde desapareceu.
O tema dos furacões pautou boa parte da extraordinária alocução de mais de duas horas que nos proporcionou -a mim, ao embaixador do Brasil em Havana, Luciano Martins, e aos colaboradores que me acompanhavam- o presidente Fidel Castro. De forma pausada e com a capacidade de entreter e de comunicar que lhe é característica, Fidel, como quem conta uma fábula, discorreu sobre a natureza dos furacões, deixando implícita a moral da história.
A partir do exemplo de Isidore, procurou demonstrar que, ao atribuir significado à história, o homem lhe dá um sentido, mas não revela seu destino. As metáforas extraídas de fenômenos naturais como a tempestade, a tormenta e o redemoinho sugerem, em geral, o confronto com o inelutável. A narrativa de Fidel procurava matizar esse determinismo. Parecia propor, em contraponto, a imagem da nau presa no rastro do furacão que precisa redefinir seu rumo para tentar prosseguir no itinerário.
Fidel procurava demonstrar que, em circunstâncias semelhantes, cabe ao governante atuar não como observador, mas como protagonista da ação. Ele sabe, afinal, que, dialeticamente, o ritmo da história resulta de variações por contradição, não por sucessão.
Essa foi minha primeira viagem a Cuba. A visita inseriu-se no contexto de aproximação e de institucionalização das relações bilaterais aprofundadas com a ida do presidente Fernando Henrique a Cuba, em novembro de 1999, a primeira visita de um chefe de Estado brasileiro à ilha. Assinei em Havana acordos de cooperação judiciária em matéria penal e de supressão de vistos em passaportes diplomáticos que testemunham o interesse de ambos os governos em aprimorar os mecanismos institucionais bilaterais e o diálogo entre os dois países. Instrumental, nesse sentido, tem sido a atuação do embaixador Luciano Martins, que, ao aliar sua reconhecida capacidade intelectual ao interesse pelos temas da agenda bilateral, soube cultivar contatos e intensificar a presença brasileira na ilha.
Cuba vive hoje momento que parece configurar um ajuste de rota. Se é visível, por um lado, a preocupação das autoridades com a manutenção do patrimônio de identidade fruto da Revolução, é evidente, por outro, a percepção da necessidade de lidar com as mudanças trazidas pelo fim da bipolaridade e pelo colapso do bloco soviético e o consequente término das relações especiais com a URSS e posteriormente a Rússia.
O grande desafio enfrentado hoje por Cuba é o de manter sua identidade em meio à nova configuração da cena internacional. Para isso, o país tem realizado importante esforço de reposicionamento, caracterizado pela busca de novos parceiros, como a União Européia e a América Latina. Cuba, ademais, tem se lançado de forma corajosa num processo de reestruturação do setor do açúcar, procurando encontrar novos caminhos para a utilização da mão-de-obra que será deslocada. Novas alternativas têm também sido buscadas no turismo e na exploração de petróleo.
Outro bom exemplo desse impulso renovador é a restauração ora em curso do magnífico conjunto arquitetônico de Havana Velha, que não apenas traz de volta o esplendor original do bairro, como atua no sentido de conservar naquela tradicional zona residencial a mesma comunidade que ali sempre esteve e que com ela guarda profundas afinidades culturais. Esse esforço está presente também na incipiente atividade empresarial na ilha, de que são exemplo os chamados paladares, restaurantes com participação de capital privado -como o fascinante La Guarida.
Em todos os encontros que mantive com autoridades cubanas durante a visita, pude testemunhar a mesma determinação de buscar redefinir os termos de inserção internacional de Cuba, o que, no caso de Havana, passa necessariamente pela normalização das relações com Washington.
Exemplo concreto disso foi a inauguração em Havana de feira de produtos agropecuários e alimentícios norte-americanos, que reuniu 280 expositores e mais de 700 empresários. A abertura contou com a presença do presidente Fidel Castro, que saudou o "esforço tão nobre" dos expositores norte-americanos, "luchando para que se desarrollen las mejores relaciones entre nuestros dos pueblos, que son afortunadamente vecinos y están obligados a ser amigos".
No discurso que proferi por ocasião da abertura da Assembléia Geral da ONU dias antes da viagem a Cuba, referi-me ao "tempo de tormenta e vento esquivo" de que nos fala Camões n" "Os Lusíadas". Nas águas procelosas em que hoje navegamos, visitar Cuba equivale a uma lição de realismo e utopia.
O realismo, que tem pautado de forma crescente a atuação do governo cubano e que se traduz na busca prioritária da reinserção do país no plano hemisférico e no âmbito internacional, não põe em questão a necessidade de manter o patrimônio de realizações em áreas como a saúde e a educação, que se identificam com o próprio ideário da Revolução. Pelo contrário. Cuba sabe, porque o aprendeu da forma mais árdua, que a postura realista é instrumento imprescindível para o resgate e a manutenção daquelas conquistas e do direito de sonhar um mundo mais justo.

Celso Lafer, 61, professor titular da Faculdade de Direito da USP, é ministro das Relações Exteriores.



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