São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2010

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FERNANDO DE BARROS E SILVA

Não pode sobrar nenhum

SÃO PAULO - "Tocou a campainha e entrou, a cabeça enorme. Onde estão?, perguntou com gravidade, os olhos ansiosos. Sua voz era doce.
Ele, o ministro evangélico, o amigo de Jesus Cristo. Onde estão? E apontamos para a fenda em nosso muro, já arrependidos de tê-lo chamado.
Mostramos os tijolos e o cimento que havíamos comprado para que fizesse o serviço, e o corredor onde guardamos a escada dobrável. Ele quebrou os tijolos no formato exato para encaixar na fenda entre os dois muros, tapando-a completamente. Então subiu na escada e começou a colocar a argamassa. Parou e esticou a cabeça enorme. Colocou as orelhas (pequenas para o formato do crânio) quase dentro da fenda. Sorriu, escutando o ruído dos bichinhos, encolhidos lá no fundo. E continuou a fechar a abertura. Murmurava alguma coisa baixinho, grave, contínua, como um mantra. Quando desceu, pediu que guardássemos o resto do material na garagem, caso fosse preciso repetir o serviço. Fizemos um cheque, que não conferiu, guardando no bolso da frente. Não pode sobrar nenhum, ele disse -o amigo de Jesus Cristo. E quando já havia virado as costas para nós, quando respirávamos aliviados, sozinhos novamente, voltou até a porta da frente e falou alto e nítido, como se adivinhasse o que estávamos pensando em fazer (furinhos no cimento para que pudessem respirar): amanhã eu volto para ver o serviço. E ainda gritou, agora sem se voltar e caminhando para longe: não pode sobrar nenhum!".

 

Essa é uma das 61 historietas de "O Mau Vidraceiro", recém-lançado por Nuno Ramos. Sua publicação, aqui, vale como homenagem a um dos maiores artistas brasileiros e como protesto contra o fanatismo dos ativistas que provocaram a retirada dos urubus da sua instalação na Bienal. Como muitos, não tolero ver animais maltratados. Mas me desagrada demais esse clamor idiota contra o artista por causa de três urubus criados em cativeiro.


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