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São Paulo, quinta-feira, 13 de novembro de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

O saldo da ditadura

O regime militar (1964-1985) demorou para se extinguir. Nunca foi deposto, mas se prolongou por dez anos de "distensão" até desembocar em mais uma transição à brasileira, quando já não havia praticamente ninguém que o defendesse. Tudo indica que com ele se tenha encerrado o ciclo de intervenções do Exército na política brasileira.
Alvo de um descrédito que se acumulou por tanto tempo, a ditadura militar foi alvo também de um esquema maniqueísta, inverso, mas semelhante ao maniqueísmo que ela própria incentivou. A imagem que ficou foi a de um despotismo de generais que suprimiu as liberdades, governou contra o povo, matou e torturou quem resistia.
Isso é verdade, mas não toda a verdade. O regime militar se instalou, no Brasil e em outros países latino-americanos, num período em que a Guerra Fria se radicalizava no Terceiro Mundo exatamente porque a paridade militar entre os Estados Unidos e a União Soviética havia congelado a geopolítica no norte. Lutava-se no sul.
Direita e esquerda se afastavam das regras da tolerância democrática. Os antagonismos acumulados em 1964 quase fatalmente desaguariam em ditadura -se não a dos generais, a do varguismo de esquerda. Os generais só intervieram quando a luta de classes foi levada ostensivamente para os quartéis, ameaçando a essência da corporação, a disciplina.
Nos primeiros anos de ditadura, a débil oposição veio principalmente de vertentes liberais cuja atuação ainda era admitida, pois os grupos de esquerda estavam desarticulados e sofriam feroz perseguição. Foi a partir de 1968 que uma nova geração de oposicionistas se organizou em facções clandestinas para mover luta armada contra o regime.
Essas facções não pretendiam restabelecer as liberdades. Seu modelo confesso era o leninismo, hoje desacreditado, mas na época uma das duas grandes opções para quem se dispusesse ao engajamento político. Caso sua aventura militarista tivesse êxito, é quase certo que teriam imposto uma ditadura de partido único no país.
O quadragésimo aniversário de sua implantação, no ano que vem, será ocasião propícia para reavaliar o significado histórico do regime de 64. Manteve o Brasil na órbita do Ocidente enquanto completava sua industrialização. Adiou o enfrentamento das disparidades sociais, que se acentuaram, fugindo pela tangente do crescimento acelerado.
Mas esses aspectos se referem ao julgamento político, pois o julgamento moral está sendo promovido na sequência de livros em que Elio Gaspari vem esmiuçando, com documentação implacável, os dois nervos do problema: o emprego da tortura como meio de repressão e a indisciplina na base do próprio aparelho repressivo.
Ficou demonstrado que a cúpula do regime, inclusive o presidente da "abertura", apoiava a política de extermínio de opositores sob custódia do Estado, adotada em meados do governo Médici. E que o governo dos militares tinha por base um subterrâneo de desmandos e desordem. É difícil que qualquer revisão histórica possa reverter essas condenações.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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