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OTAVIO FRIAS FILHO
O saldo da ditadura
O regime militar (1964-1985) demorou para se extinguir. Nunca
foi deposto, mas se prolongou por dez
anos de "distensão" até desembocar
em mais uma transição à brasileira,
quando já não havia praticamente
ninguém que o defendesse. Tudo indica que com ele se tenha encerrado o
ciclo de intervenções do Exército na
política brasileira.
Alvo de um descrédito que se acumulou por tanto tempo, a ditadura
militar foi alvo também de um esquema maniqueísta, inverso, mas semelhante ao maniqueísmo que ela própria incentivou. A imagem que ficou
foi a de um despotismo de generais
que suprimiu as liberdades, governou
contra o povo, matou e torturou
quem resistia.
Isso é verdade, mas não toda a verdade. O regime militar se instalou, no
Brasil e em outros países latino-americanos, num período em que a Guerra
Fria se radicalizava no Terceiro Mundo exatamente porque a paridade militar entre os Estados Unidos e a União
Soviética havia congelado a geopolítica no norte. Lutava-se no sul.
Direita e esquerda se afastavam das
regras da tolerância democrática. Os
antagonismos acumulados em 1964
quase fatalmente desaguariam em ditadura -se não a dos generais, a do
varguismo de esquerda. Os generais
só intervieram quando a luta de classes foi levada ostensivamente para os
quartéis, ameaçando a essência da
corporação, a disciplina.
Nos primeiros anos de ditadura, a
débil oposição veio principalmente de
vertentes liberais cuja atuação ainda
era admitida, pois os grupos de esquerda estavam desarticulados e sofriam feroz perseguição. Foi a partir
de 1968 que uma nova geração de oposicionistas se organizou em facções
clandestinas para mover luta armada
contra o regime.
Essas facções não pretendiam restabelecer as liberdades. Seu modelo
confesso era o leninismo, hoje desacreditado, mas na época uma das duas
grandes opções para quem se dispusesse ao engajamento político. Caso
sua aventura militarista tivesse êxito, é
quase certo que teriam imposto uma
ditadura de partido único no país.
O quadragésimo aniversário de sua
implantação, no ano que vem, será
ocasião propícia para reavaliar o significado histórico do regime de 64.
Manteve o Brasil na órbita do Ocidente enquanto completava sua industrialização. Adiou o enfrentamento
das disparidades sociais, que se acentuaram, fugindo pela tangente do
crescimento acelerado.
Mas esses aspectos se referem ao julgamento político, pois o julgamento
moral está sendo promovido na sequência de livros em que Elio Gaspari
vem esmiuçando, com documentação
implacável, os dois nervos do problema: o emprego da tortura como meio
de repressão e a indisciplina na base
do próprio aparelho repressivo.
Ficou demonstrado que a cúpula do
regime, inclusive o presidente da
"abertura", apoiava a política de extermínio de opositores sob custódia do
Estado, adotada em meados do governo Médici. E que o governo dos militares tinha por base um subterrâneo de
desmandos e desordem. É difícil que
qualquer revisão histórica possa reverter essas condenações.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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