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CARLOS HEITOR CONY
O buraco da memória
RIO DE JANEIRO - Coisa misteriosa, para mim, é um buraco, qualquer
buraco. Na infância, ficava intrigado: quanto mais terra tirava do buraco, mais terra havia. Não acabava, a
menos que eu fosse parar no Japão,
que me garantiam estar bem embaixo do Lins de Vasconcelos, mas do
outro lado do nosso planeta. Seria
exagero, nada tinha a fazer no Japão.
Memória também é um buraco,
quanto mais se tira matéria, mais
matéria aparece. E, ao contrário dos
buracos que fazemos no quintal, nem
adianta ir até o fundo, pois não há
nada, nenhum Japão no fundo dela.
Mexendo em papéis antigos, dei
com um dos testamentos que o pai fazia de vez quando, nos raríssimos
momentos em que não tinha nada a
fazer. Eram muitos os seus testamentos, suas últimas declarações e vontades. Começava invariavelmente perdoando todos os seus inimigos -e ele
nunca teve um inimigo. Não levava
mágoas de ninguém, pois nunca se
sentia magoado, um bom-dia que recebia do vizinho ou do leiteiro era
uma homenagem, um tapete vermelho estendido à sua frente. Acreditava que todos gostavam dele porque
gostava de todos.
Não se lembrava de ter, voluntariamente, ofendido ou destratado quem
quer que fosse e, se o fizera, pedia desculpas e prometia reparação -se
houvesse tempo e oportunidade.
Citava uma infinidade de amigos e
conhecidos, dando um livro de sua
biblioteca ou um selo de sua coleção
a cada um deles como "penhor de sua
amizade". Pedia moderação nos funerais, nada de luxos e de prantos.
Aceitava preces, confessava que tinha
muitos pecados e deles se arrependia.
Foram vários os testamentos, todos
mais ou menos iguais, somente as datas variavam. O último, feito pouco
antes do fim, foi o mais enigmático,
ele que não tinha enigma nenhum,
era transparente e colorido como um
vitral de igreja. Deixou um embrulho
para mim, embrulho que nunca abri.
Foi a forma que encontrei para que
ele continuasse perto de mim.
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