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São Paulo, quinta-feira, 13 de novembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O buraco da memória

RIO DE JANEIRO - Coisa misteriosa, para mim, é um buraco, qualquer buraco. Na infância, ficava intrigado: quanto mais terra tirava do buraco, mais terra havia. Não acabava, a menos que eu fosse parar no Japão, que me garantiam estar bem embaixo do Lins de Vasconcelos, mas do outro lado do nosso planeta. Seria exagero, nada tinha a fazer no Japão.
Memória também é um buraco, quanto mais se tira matéria, mais matéria aparece. E, ao contrário dos buracos que fazemos no quintal, nem adianta ir até o fundo, pois não há nada, nenhum Japão no fundo dela.
Mexendo em papéis antigos, dei com um dos testamentos que o pai fazia de vez quando, nos raríssimos momentos em que não tinha nada a fazer. Eram muitos os seus testamentos, suas últimas declarações e vontades. Começava invariavelmente perdoando todos os seus inimigos -e ele nunca teve um inimigo. Não levava mágoas de ninguém, pois nunca se sentia magoado, um bom-dia que recebia do vizinho ou do leiteiro era uma homenagem, um tapete vermelho estendido à sua frente. Acreditava que todos gostavam dele porque gostava de todos.
Não se lembrava de ter, voluntariamente, ofendido ou destratado quem quer que fosse e, se o fizera, pedia desculpas e prometia reparação -se houvesse tempo e oportunidade.
Citava uma infinidade de amigos e conhecidos, dando um livro de sua biblioteca ou um selo de sua coleção a cada um deles como "penhor de sua amizade". Pedia moderação nos funerais, nada de luxos e de prantos. Aceitava preces, confessava que tinha muitos pecados e deles se arrependia.
Foram vários os testamentos, todos mais ou menos iguais, somente as datas variavam. O último, feito pouco antes do fim, foi o mais enigmático, ele que não tinha enigma nenhum, era transparente e colorido como um vitral de igreja. Deixou um embrulho para mim, embrulho que nunca abri. Foi a forma que encontrei para que ele continuasse perto de mim.


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