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São Paulo, quinta-feira, 13 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O agente da CIA

DENIS LERRER ROSENFIELD

Às vezes , temos a impressão de que o mundo dá voltas para permanecer sempre no mesmo lugar. No caso da exoneração de Luiz Eduardo Soares da Secretaria Nacional de Segurança Pública, o governo não hesitou. O agora ex-secretário foi lançado às feras. No governo e no partido, ninguém o defendeu publicamente. Ficamos todos surpresos com a rapidez dos acontecimentos, sobretudo porque o atual governo tem sido extremamente leniente com a viagem de Benedita da Silva, as diárias de Agnelo Queiroz, as mulheres de ministros empregadas em outros ministérios e órgãos governamentais e os dossiês que implicam hoje assessores do governo com supostas denúncias de outros candidatos à eleição presidencial.
O interessante dessa história, contudo, reside em que um documento apócrifo, vazado à imprensa, circulava nos ministérios da Justiça e da Casa Civil, denegrindo o trabalho e a imagem do então secretário. Mais precisamente, segundo declarou o próprio Luiz Eduardo recentemente, no programa "Roda Viva", esse "documento" teria sido elaborado por assessores do próprio Ministério da Justiça. O seu estilo é de alta estirpe: segue os melhores cânones do stalinismo! Até agora, o que é assaz estranho, não há nenhuma declaração ministerial sobre esse fato, que está no centro da demissão e da polêmica. Há uma aposta no esquecimento. Mas esquecimento de:
1) um tipo de "documento" que visa atingir a imagem de uma pessoa, buscando o seu amesquinhamento pessoal, imputando a ela, por exemplo, uma falta moral. Descarta-se uma pessoa politicamente, utilizando-se de uma suposta imoralidade. Aliás, esse "documento" é pródigo em caracterizações psicológicas, referindo-se a Luiz Eduardo e seus assessores como "arrogantes", "vaidosos" etc.;
2) que o Estado é independente do partido, sob pena de haver uma coincidência entre ambos, o que caracteriza os regimes totalitários. Assim, o "documento" critica Luiz Eduardo por ter empregado pessoas do PSDB, PMDB e PSB. Ora, o pretenso crime foi o de ter contratado pessoas não plenamente identificadas com o partido. Por exemplo, o major "X" cometeu o crime de lesa-majestade -na verdade de lesa-partido- de ser "antiesquerda" (e, em especial, antipetista). A equipe do secretário "não permitiu em momento nenhum o diálogo e a inserção de pessoas de vida e prática dedicadas ao Partido dos Trabalhadores";


Voltamos aos velhos refrães que caracterizam o dogmatismo, a escravidão do pensamento que prenuncia a da ação

3) que não é nenhum crime estudar e se preparar. Porém, na "neolíngua" petista, alguém peca por ser "aluno da pós-graduação da PUC-RS". De fato, é difícil compreender que um policial militar queira efetuar um curso de aperfeiçoamento;
4) que a Anpocs é a mais importante associação da área de ciências sociais no Brasil, sendo constituída das pessoas mais qualificadas. Ora, o convênio assinado entre a secretaria e essa associação é considerado "uma das maiores fraudes na produção de papel e poesia, com links para o direcionamento de linhas de crédito para pesquisas direcionadas a alguns amigos-consultores (ou seria consultores-amigos) de universidades, ONGs, centros de pesquisa etc.". Será que a ciência brasileira não merece respeito?;
5) que financiamentos internacionais fazem parte do modo de captação de recursos, aliás amplamente utilizado por outros ministérios, em especial o da Fazenda. E o acordo com o FMI que acaba de ser renovado? Por que, então, acusar a embaixada americana, senão por um antiamericanismo primário, próprio de cabeças comunistas?;
6) que a distribuição de recursos não deve obedecer a critérios partidários, mas técnicos, próprios de um governo desvinculado do partido. O "documento" afirma que a "Senasp tem se recusado a fazer um trabalho articulado, que concentre e aplique a captação de recursos internacionais em municípios compromissados com o PT e seus aliados preferenciais". De um lado, temos a crítica ao capital internacional, de outro, a exigência de que ele sirva ao partido se entrar no Brasil;
7) que certas linguagens podem ser perigosas ao anunciarem práticas totalitárias. Nessa perspectiva, Luiz Eduardo e assessores são considerados "pretensos galantes" que cometeram um "crime burguês". "Vaidosos, acharam-se muito inteligentes; no fundo, são os mesmos pequeno-burgueses" -de sempre, poderíamos acrescentar. Voltamos aos velhos refrães que caracterizam o dogmatismo, a escravidão do pensamento que prenuncia a da ação. Numa cabeça assim constituída, a democracia torna-se uma palavra vazia;
8) que a venda de "pérolas" falsas configura uma fraude. Na melhor linguagem comunista, de dignos herdeiros da ex-União Soviética, os autores escrevem que "o currículo que o governo brasileiro está difundindo na área de inteligência tem inegável contribuição (inclusive na parte dos conteúdos programáticos) da inteligência norte-americana (leia-se CIA)". Stálin deve estar se regozijando em sua tumba. Enfim, encontrou ele verdadeiros discípulos. Louvemos, então, o ato de coragem do governo ao se livrar, na figura de Luiz Eduardo Soares, de um perigoso agente da CIA!
Será que os ministros envolvidos e o partido não têm nada a dizer? O silêncio ministerial não deixa de ser eloquente.

Denis Lerrer Rosenfield, 52, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política".


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