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São Paulo, quinta-feira, 13 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Para além do balcão

VALTER UZZO

Num país conturbado pela crise generalizada, aplica-se aquela velha parábola de Abraham Lincoln: "Em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão".
O Brasil vive uma crise terrível em que nem o Executivo nem o Judiciário conseguem responder às demandas geradas pela tensão decorrente da abissal desigualdade social. A produtividade da mão-de-obra cresceu 20 vezes nas últimas duas décadas e a recompensa foi a perda de postos de trabalho, com um desemprego que bate nos 20% -e até em 30%, se reduzirmos a questão aos nossos jovens.
O Judiciário não consegue dar resposta às demandas decorrentes do incremento da litigiosidade daí decorrente e, ao mesmo tempo, padece das agruras que lhe foram infligidas por 20 anos de neoliberalismo que buscava o "Estado mínimo". Um bom exemplo é a Justiça do Trabalho em São Paulo, que nos últimos 12 anos cresceu em quantidade de varas e diminuiu em número de funcionários, embora os feitos que lhe são submetidos tenham quadruplicado. O resultado é que vivemos dias de apocalipse, na feliz expressão de recente e brilhante manifesto de combativa entidade representativa dos advogados. A deterioração dos serviços judiciários estabeleceu o mais negro caos forense e leva a áspera tensão entre advogados e juízes, com diários episódios de conflitos causados pela violação de prerrogativas da profissão.
Os jurisdicionados não conseguem obter da Justiça um serviço adequado e os seus patronos ficam atolados num pântano de inoperância que não lhes permite obter o que seus clientes precisam e não lhes permite ganhar a vida operando um direito que não funciona porque está emperrada a máquina destinada a concretizá-lo. Em vez de equipar o Judiciário para atender suas funções, privatiza-se a função jurisdicional através de mecanismos de solução de conflitos que dispensam a intervenção dos advogados. Os juizados de pequenas causas, Jecrims, comissões de conciliação prévia, câmaras de arbitragem vieram para destroçar o mercado de trabalho e a clientela da advocacia. E, quando se anuncia um concurso público na área jurídica, milhares de candidatos se inscrevem para cada vaga. Ao lado do encolhimento da procura de advogados, multiplica-se ao infinito a oferta desses profissionais.


A Ordem dos Advogados precisa atuar no campo institucional para participar ativamente da reforma do Judiciário

Quem está na advocacia há muitos anos vê a profissão naufragar, e quem acaba de chegar ao mercado de trabalho vê-se diante de um labirinto que lhe parece impossível desvendar. Não há uma cura mágica para tudo isso, porque trata-se de uma crise -dentro de outra crise e dentro de outra ainda maior. O caminho está em alinhar a Ordem dos Advogados com firmeza na defesa da corporação e no ataque a todo esse conjunto de questões. É preciso uma defesa intransigente das prerrogativas, com ação imediata, por exemplo, contra juízes que prendem ilegalmente advogados -e não conceder um saudoso desagravo dois anos depois. No entanto tão importante como ter essa agilidade é ter a clareza de que é preciso remover as causas que geram esse tipo de incidente.
Somente nos queixarmos das insuficiências dos serviços prestados nos cartórios não basta, porque a causa de tudo isso está muito além do balcão. Da mesma forma que não se pode mais admitir uma política de rapapés e salamaleques para com o Judiciário, é preciso pressionar mais para que este seja modernizado e receba equipamentos físicos e humanos suficientes para atuar. Assim como é preciso combater o inchaço da profissão com o exame de ordem, não podemos cair no exagero inverso de usá-lo como uma arma contra os novos bacharéis.
A ordem precisa atuar no campo institucional para participar ativamente da reforma do Judiciário; impedir a proliferação de cursos jurídicos, exigindo a subordinação da criação de mais faculdades à disponibilidade de mercado de trabalho; barrar e reverter a tendência à solução extrajudicial dos conflitos e a consequente exclusão do advogado; gerar novos campos de mercado de trabalho; construir um suporte ativo ao advogado iniciante; bater com firmeza no caos forense e nas arbitrariedades cometidas.
Se bem observarmos, os muitos problemas estão interligados. No entanto a dimensão das eleições para a direção da entidade, congregando quase 200 mil eleitores, dificulta a discussão mais aprofundada desses temas e favorece as campanhas baseadas em promessas simplistas e milagrosas. Transpor essa cortina de mágicas prometidas e concretizar uma escolha baseada na compreensão desses grandes temas é o desafio que se coloca ao eleitor neste pleito. E certamente a advocacia paulista conseguirá superar mais esse grande desafio.


Valter Uzzo, 63, advogado, secretário-geral licenciado da OAB-SP, é candidato à presidência da entidade.




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