São Paulo, terça-feira, 14 de janeiro de 2003

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ALCINO LEITE NETO

A chance histórica do PT antipopulista

Assim como o fascismo permanece um fantasma na Europa, o populismo é uma assombração na América Latina. O fascismo é sempre de direita. O populismo pode até manifestar gosto pelo socialismo.
Se ele se manifesta de variadas formas, como caracterizar o populismo? Trata-se de uma prática de poder que pretende simplificar a política e a sociedade, desqualificando os mecanismos de representação e criando o sentimento de vínculo direto entre a vontade do "povo" e a máxima instância simbólica num país, o chefe de Estado. Não há apenas líderes políticos inclinados ao populismo. Os próprios cidadãos costumam fazer "apelo" a esses líderes para uma prática populista.
"A política repousa sobre um fato: a pluralidade humana", escreveu Hannah Arendt. Para o exercício da política, as vontades livres numa sociedade plural organizam instituições complexas, como o sistema representativo, que a fazem funcionar. Às vezes, as pessoas -aflitas com as necessidades e a insegurança do presente- ficam decepcionadas com o processo difícil das decisões institucionais.
Passam a atribuir sua infelicidade às próprias instituições, que elas aceitam que sejam resumidas a duas figuras: a do líder paternal, com quem imaginam dialogar diretamente, e a do "povo", um ectoplasma ideológico que dá a sensação cultural de força, em oposição às "elites" políticas e econômicas, que são diabolizadas. Em geral, o custo desse processo é a rarefação da liberdade política.
Lula não é um homem de inclinações populistas. E o PT não é nem nunca foi um partido populista. Ao contrário, uma das características históricas do partido é seu esforço de buscar a ampliação da consciência e da ação política dos cidadãos por meio de novos mecanismos participativos, mas sem contestar as instituições democráticas clássicas.
Há muitas explicações para a vitória de Lula, mas é certo que ela foi uma recusa do populismo. Tratou-se de uma decisão política refletida de uma maioria, ao cabo de um processo eleitoral suficientemente longo, em que candidatos de perfil duvidoso foram sendo descartados pelos eleitores. Eis o que há de radical no último pleito: a "revolução" que Lula e o PT no Planalto representam é da ordem da racionalidade política e democrática. Tanto o PT quanto Lula, contudo, deveriam ficar atentos para que determinadas iniciativas de governo ou decepções que possam surgir nos próximos meses não incentivem a inclinação emocional brasileira ao populismo, com tudo que ele traz consigo -nacionalismo, messianismo, maniqueísmo, antiintelectualismo etc. Essa tendência ao populismo, se redespertada, faria do próprio PT a sua primeira vítima nas próximas eleições.
Logo em seguida ao projeto Fome Zero, ou talvez ao mesmo tempo, seria bom que fosse entregue também aos excluídos uma cesta básica de cultura política, não-ideológica, de modo a incentivar a sua disposição, demonstrada nas eleições, de se tornarem cidadãos respeitados e a incluí-los todos entre os amantes das instituições e da liberdade. Para começar, basta dizer a eles que os alimentos não são uma doação, mas uma conquista.
O PT pode não fazer o governo de seus sonhos, mas, se trabalhar em prol do amadurecimento da cidadania, já terá realizado uma grande tarefa histórica: a de transformar o Brasil numa comunidade política moderna, democrática e autoconsciente.


Alcino Leite Neto é correspondente da Folha em Paris. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Roberto Mangabeira Unger, que escreve às terças-feiras nesta coluna.


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