São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A eleição de um democrata pode mudar a política externa norte-americana?

SIM

Vamos todos ter que mudar

BRAZ DE ARAUJO

Já sabemos de dois dados evidentes sobre as eleições presidenciais norte-americanas. Primeiro, o presidente a ser eleito será democrata ou republicano. Segundo, já sabemos quem serão os candidatos de ambos os partidos, salvo acontecimentos inesperados que o ser humano não pode prever. Portanto, ou teremos a reeleição de George W. Bush (republicano) ou a vitória de John F. Kerry (democrata). É muito cedo ainda para anunciar o resultado final. Como exercício de futurologia, pode-se dizer que, já na metade de agosto, o cenário eleitoral estará bem mais claro, com suas tendências consolidadas, sempre com a cautela para acontecimentos inesperados. Afinal, os Estados Unidos, com seus aliados mais próximos, estão em guerra contra o terrorismo.
Assim, é preciso que fique bem claro que, seja qual for o resultado, os Estados Unidos vão continuar a guerra contra o terrorismo. Mesmo assim, seria certamente uma grande vitória momentânea -para os terroristas e toda a torcida e militância antiamericana no mundo- uma eventual derrota do presidente Bush. Os militantes das organizações terroristas do mundo todo vão festejar. Seria também uma vitória para os aliados de Chirac, Schröder e Putin, para a maioria das tendências social-democratas mundiais (recentemente reunidas), que lideraram uma oposição à estratégia de guerra ao terrorismo do presidente republicano. Seria uma vitória para todos os movimentos pacifistas, que simplesmente repudiam essa guerra, pois contrários a todos os tipos de guerra. Todos teriam alguma coisa a festejar, durante um certo tempo, até que o novo governo democrata mostrasse seu estilo, hipoteticamente mais soft, mais suave, mais cooperativo, mais multilateral.
Foi justamente na era democrata do afortunado ex-presidente Clinton que a Al Qaeda iniciou seus ataques aos Estados Unidos. Portanto, seria uma surpresa extraordinária se os terroristas do mundo todo abandonassem suas táticas terroristas após hipotética vitória democrata. Seria também surpreendente se as forças atuais, lideradas pelos Estados Unidos, voltadas para ações de prevenção e repressão ao terrorismo, deixassem de fazê-lo. Portanto, o jogo da política mundial mudaria, porque o estilo do líder da maior potência do mundo teria mudado.
Em estratégia, como em política, é fundamental dar importância à forma, pois aí está a dimensão visível da arte, a força do potencial do ser humano ou sua fraqueza, onde se explicitam a Virtù, de quando em vez a Fortuna, daqueles que nos conduzem na paz ou na guerra. Em democracia, alternância política significa mudança de alguma coisa, e não mudança de tudo. Portanto, muda o presidente, muda a política e pode mudar a estratégia. Mudando a política, mudam-se ministros, redefinem-se prioridades, determinados interesses são atendidos em detrimento de outros. A teoria se aplica à política interna e à política externa. Para mim, é evidente que a política externa dos Estados Unidos mudaria com a liderança democrata em muitos aspectos. Por exemplo: os democratas são muito mais protecionistas do que os republicanos. Que se preparem mais ainda os negociadores brasileiros para flexibilizar o protecionismo e o fechamento de nosso mercado para obter vantagens competitivas sistêmicas.
As considerações acima podem ser interessantes para um outro argumento importante sobre a mudança em política externa. Em outro debate nesta página, já mostrei que uma metodologia de análise das mudanças nas relações entre países, no atual contexto internacional, sugere que elas se tornam mais voláteis, em muitos casos marcadas pela duplicidade, pela dissimulação. O realismo político sustenta que as nações perseguem interesses unilaterais, que as alianças tendem a ser mais momentâneas (como na fase atual da guerra ao terrorismo) do que multilaterais.
Vale repetir Huntington: as relações entre os países tendem a ser mais ambivalentes em cenários simultâneos de competição e cooperação. Aliás, esse é o cenário da selva: existem perigos múltiplos, armadilhas escondidas, surpresas desagradáveis, ambigüidades morais. Não é por acaso que o mundo todo anda mais estressado.
Ora, é esse também o cenário da estratégia contra o terrorismo. Se todos somos vulneráveis, não vejo como a guerra vai terminar nem quando. Portanto, a liderança norte-americana, seja ela qual for, vai ter que continuar a guerra, adaptando-se às circunstâncias. Os estrategistas sempre afirmam que a melhor teoria da guerra é a teoria da guerra passada. A guerra em andamento está exigindo mudanças nas teorias da guerra. O mundo mudou após o 11 de Setembro. Os republicanos mudaram. Os democratas terão que mudar para convencer os eleitores norte-americanos de que poderão ser mais eficazes do que os republicanos no combate ao terrorismo. Enquanto isso, o Brasil, que já foi a oitava economia do mundo e está se tornando a décima-terceira, tem subestimado com preconceitos o significado estratégico de defesa e segurança, inclusive economicamente. Nossa política externa vai ter que mudar.


Braz de Araujo, cientista político, é professor de relações internacionais e coordenador do Núcleo de Políticas e Estratégia da USP.


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