São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A eleição de um democrata pode mudar a política externa norte-americana?

NÃO

Sobre a capacidade de matar

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS

O xalá mude o personagem, mas permanecerá o mesmo teatro da crueldade se o companheiro Bush for posto para correr pelas urnas, com o momentâneo alívio catártico mundial diante de seu aguçado instinto de morte. Trata-se de um tânatos violento dirigido contra a humanidade, cuja etiologia talvez esteja no hábito contraído em sua adolescência e mocidade: o hábito macdonaldiano de comer hambúrguer. Manducação apressada. Bandeijão auto-service afluente. Afinal, a paz é um fenômeno digestivo.
Equívoco, no entanto, é demonizá-lo como uma excrescência psicológica. Não nos esquecemos que, flatulento, péptico, dentes podres, com mau hálito insuportável, Hitler foi amado apaixonadamente por Eva Braun. Quem sabe Bush não seja um tesão de homem no recôndito de sua intimidade?
A sádica capacidade de matar não é só dele, é um ethos generalizado, uma personalidade básica entranhada na civilidade do imperialismo videofinanceiro durante a etapa declinal e agônica do combustível petróleo, que é fóssil, esgotável, finito e não-renovável.
Sediadas nos EUA e com interesses norte-americanos, em estreita simbiose bélica e militarista com o dólar comprando petróleo no Oriente Médio, as grandes corporações transnacionais decidem a morfologia do poder político. São elas que fazem a cabeça do Estado. Dificilmente um candidato democrata eleito conseguirá escapar desse condicionamento econômico objetivo. Sob tal ângulo, a pugna eleitoral entre democrata e republicano lembraria um pouco a picuinha de triste memória da Arena versus MDB.
Ultimamente virou lugar comum dizer que o mundo só vai mudar para melhor se, no interior da sociedade norte-americana, houver uma radical metamorfose na opinião pública ou na consciência popular. Eu já li filósofos marxistas contemporâneos defendendo a tese de que o futuro do socialismo em escala universal será decidido nos Estados Unidos. Resta saber se ficaremos, em outras paragens, chupando o dedo ou morrendo de medo. Esperando a decisão revolucionária tomada na área capitalista a mais desenvolvida do planeta.
O problema é que a opinião pública norte-americana está convencida (independente do resultado das urnas) de que o comportamento bélico dos Estados Unidos no exterior acaba por gerar ganhos e dividendos para a sociedade lá deles. A guerra no Oriente Médio é um meio de dar sobrevida ao petróleo norte-americano, o qual já foi consumido em 90% de suas próprias reservas. O detalhe escandaloso é que os EUA consomem 8 bilhões de barris por ano, enquanto as nossas reservas medidas pela Petrobrás são de 12 bilhões de barris. Todavia, o atual governo não toma nenhuma iniciativa a favor do álcool e dos óleos vegetais. Essa alienação energética do governo Lula vai custar caro ao país e ao povo, perto do que o apagão será um piquenique.
Dir-se-ia então que, apesar de todos os dissabores e constrangimentos, sendo cada vez mais desamados no mundo inteiro, eles -os hermanos do norte- se consideram felizes e afortunados. E, para evocar um bacanudo do pensamento dialético, os felizes não são piedosos.
Das vozes de muita gente boa e bem intencionada, ouvimos a doce esperança de que os EUA irão perdoar a nossa impagável e sisífica dívida externa. Chega. Basta. Daqui em diante vocês não deverão nenhum tostão.
Por mais que a exploração imperialista financeira realizada em vários países não enriqueça o povo da nação hegemônica, somente por obra e graça do Espírito Santo acontecerá o milagre do perdão da dívida externa do Terceiro Mundo.
Se o presidente Kennedy (que molhava malandramente de subsídios as mãos dos governadores anti-João Goulart, como Magalhães Pinto, Ademar de Barros e Carlos Lacerda) não fosse apagado em Dallas, substituído por Lindon Johnson, não teria sido desencadeado o golpe de Estado que cortou nossa democracia em 1964? Hoje não é mais a Guerra Fria entre EUA e URSS. Hoje é a videoguerra quente pela posse do petróleo que movimenta as sociedades industriais. Tanto é que os países europeus fizeram um acordo tácito com a aprontação do companheiro Bush. França e Alemanha não têm petróleo.
Qualquer guri de ginásio sabe que a invasão do Iraque não foi para caçar o pusilânime do Saddam e as suas armas químicas. O terrorismo é subterfúgio. Oitenta por cento das reservas mundiais do petróleo estão localizadas no Oriente Médio. É nesse botim da guerra que os EUA estão de olho gordo, não importando se o presidente seja republicano ou democrata.


Gilberto Felisberto Vasconcellos, 50, é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). É autor de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo, 1997), entre outras obras.


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