São Paulo, Domingo, 14 de Fevereiro de 1999
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TENDÊNCIAS/DEBATES
O que está em jogo no Brasil



O resto do mundo observa. A incapacidade brasileira de resolver o problema, efetivamente, será um severo golpe
ALBERT FISHLOW

O Brasil passa por uma crise de confiança nos mercados internacionais. A desvalorização do real deflagrou estimativas drásticas de recessão, queda no nível de emprego, potencial de inflação e declínio na entrada de investimentos estrangeiros.
Ao mesmo tempo, o país está em meio a uma importante disputa entre o governo da República e alguns governos estaduais. Por mais que o conflito entre o presidente Fernando Henrique e o governador Itamar Franco tenha elementos pessoais importantes, retém circunstâncias clássicas, que emergiram por diversas vezes na história do país. Houve a tentativa de secessão de São Paulo nos anos 30; um século antes, o Rio Grande do Sul tentara formar sua "República de Piratini"; e há que lembrar o papel de Minas, Rio e São Paulo em 1964. A própria Carta de 1988 e a constante necessidade subsequente de reformá-la são indicadores de que essas diferenças continuam a existir.
Não se trata, pois, de história nova. Além do mais, a questão é característica de todos os grandes países. No cerne do colapso russo, em agosto do ano passado, estava a incapacidade do governo federal de recolher impostos, enquanto os governos estaduais, de alguma forma, conseguiam cumprir suas funções tributárias. Nos EUA, uma das razões para o recente declínio nos desembolsos federais e a melhora da situação orçamentária foi a transferência de algumas das responsabilidades pelo serviço social a Estados e municípios.
Os interesses regionais frequentemente dominam, mesmo quando há uniformidade política; quando se sobrepõem a diferenças políticas, os problemas resultantes tornam-se ainda mais severos.
Mas a questão surgiu agora em um momento crítico. Pode-se até dizer que ela tenha precipitado a atual situação. Ironicamente, uma das grandes realizações do atual governo brasileiro foi a eliminação da emissão de dinheiro pelos Estados, por meio de uma custosa reformulação dos bancos estaduais e da consolidação das suas dívidas.
Parte da razão para que o Orçamento federal apresente déficits desde 1995 vem sendo precisamente o esforço continuado do governo brasileiro para resolver esses problemas já antigos. No passado, eles eram tratados de forma simples: os Estados realizavam empréstimos, por intermédio dos bancos estaduais, e seus déficits acabavam sendo cobertos por meio da emissão de moeda pelo Banco Central, o que resultava em inflação. Mas isso ficou para trás.
É claro que a situação é bastante complicada pela recessão e pela incapacidade continuada de alguns Estados importantes no que toca à redução de suas obrigações em termos de folhas de pagamento. Em meio à alta do desemprego, essa se tornou uma questão crucial.
No Rio Grande do Sul, a folha de pagamento responde por 84% do Orçamento estadual; no Rio, a proporção é de 80%; em Minas, de 77% (há uma lei que exige que as folhas de pagamento sejam de no máximo 60% dos Orçamentos estaduais). Além disso, os governos estaduais são novos nesses três casos; seus problemas, até certo ponto, couberam-lhes como herança. Em contraste, no Estado de São Paulo, onde Mário Covas, também do PSDB, continua a ser governador, a porcentagem do Orçamento estadual dedicada a cobrir a folha de pagamento já foi reduzida, com sucesso, para 64%.
As diferenças políticas também são muito importantes. De um lado, há forte resistência à privatização continuada dos setores de energia, bancos etc., expressa por governadores de oposição. De outro, os governadores estão bastante conscientes de que sua popularidade subiu e de que a do presidente caiu bastante, devido às dificuldades econômicas que o país vem enfrentando. Eles, obviamente, estão bastante ávidos por explorar essa vantagem.
O resto do mundo observa. A incapacidade brasileira de resolver o problema, efetivamente, será um severo golpe. Prejudicará seriamente a estabilização econômica (que em breve criaria um real mais forte, agora já sensivelmente depreciado) e a possibilidade de juros reais mais baixos (que agora subiram assustadoramente). As fontes externas de recursos simplesmente se recusarão a assumir compromissos com o Brasil. Isso vai diminuir os ganhos impressionantes de maturidade política demonstrados na sessão extraordinária do Congresso no mês passado.
Acima de tudo, o sofrimento caberá principalmente aos mais pobres, cujo mísero padrão de vida subiu um pouco com a chegada da moeda estável e com o fim da intervenção governamental ineficiente na economia. Esse é um resultado que não interessa a ninguém.
O presidente Cardoso e os governadores concordaram em se reunir. Cabe a eles encontrar uma maneira eficaz de resolver o problema, que lhes preserve a imagem, mas não ignore as questões fundamentais de responsabilidade nacional. Há muito em jogo no Brasil.


Albert Fishlow, 63, é consultor sênior de economia internacional do Council on Foreign Relations, em Nova York (EUA). Foi professor das universidades da Califórnia em Berkeley (1983-94) e de Yale (1978-83).
Tradução de Paulo Migliacci




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