São Paulo, terça-feira, 14 de março de 2000


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Reféns da bagunça


Quem quiser repetir o famoso confisco da poupança já dispõe de suporte para torná-lo legal


REGINALDO DE CASTRO

Em uma de suas sentenças mais polêmicas, Goethe sustentava que preferia "injustiça à desordem". O axioma, tomado em sentido literal, foi indevidamente explorado por caudilhos e ditadores, que, em nome de uma ordem aparente -a ordem autoritária é sempre e apenas aparente-, suprimiam liberdades e direitos fundamentais.
A frase de Goethe, um humanista admirável (e portanto cultor do patrimônio maior do humanismo, que é a justiça), deve ser entendida como recurso ao exagero para dar ênfase a algum ponto de vista, no caso o caráter danoso da desordem na vida humana. Ela é destrutiva e corruptora, levando inexoravelmente ao sofrimento e ao atraso.
O preâmbulo vem a propósito de recentes acontecimentos envolvendo o interminável processo de reformas em curso no Congresso, marcado por desordem e improviso -numa palavra, pelo caos. Questões fundamentais são decididas de afogadilho, sem exame mais aprofundado, e votadas a toque de caixa. Não há exagero em afirmar que muitos votam sem nem sequer saber o teor e o alcance do que está sendo votado. Cada qual pensa apenas na sua paróquia; ninguém se ocupa do interesse nacional. Produz-se uma estrutura fragmentada, sem espinha dorsal.
O resultado é trágico, para dizer o mínimo. O ambiente anárquico favorece golpistas e oportunistas, profissionais habituados a lidar com o caos e a dele tirar proveito pessoal, em detrimento do interesse público, da ética e do Estado Democrático de Direito.
Veja-se, por exemplo, o que aconteceu, em dezembro, em profunda surdina, com a votação da lei 9.882, que regulamenta o parágrafo 1º do artigo 102 da Constituição. Ninguém soube de nada: nem mídia, nem sociedade civil organizada, nem mesmo a maioria dos que votaram a lei ou instituições especializadas, como Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Associação dos Magistrados do Brasil (AMB). Não houve discussão nenhuma, não obstante a importância do tema.
A lei trata de algo que parece hermético à compreensão leiga: a arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição. Trata-se de algo simples e vital: a regulamentação do direito da sociedade de denunciar violações à Constituição, por leis ou atos do poder público.
A relevância de tal lei exigiria amplo e profundo debate prévio, antes de sua votação. Por que então aprová-la de afogadilho, em votações por atacado, no meio de dezenas de outras propostas, como costumam ser as votações em final de ano legislativo?
Não há nada de casual nisso, muito pelo contrário. É exatamente do caos que se estabelece naqueles momentos, quando se procura compensar em um ou dois dias meses inteiros não aproveitados para discussão e votação de propostas, que se servem os oportunistas para embutir ciladas na legislação.
No caso dessa lei, há pelo menos duas ciladas. A principal está no parágrafo 3º do artigo 5º, que estabelece, por vias oblíquas, o instituto da avocatória, recentemente suprimido, por seu caráter autoritário e centralizador, do projeto da reforma do Judiciário.
A avocatória (dispositivo que constava no célebre pacote de abril, do tempo da ditadura militar) permite que um processo seja interrompido, em qualquer grau de jurisdição, para que o Supremo Tribunal Federal, avocando-o a si, decida previamente o teor da matéria constitucional nele contida. Trata-se de instrumento autoritário, que verticaliza ainda mais a Justiça.
A OAB e diversos partidos opuseram-se a ele e sentiram-se vitoriosos quando o governo dele abriu mão na votação da reforma do Judiciário. Eis que, dias depois, ouço de uma influente autoridade jurídica da República, em ambiente informal, o comentário irônico de que a avocatória foi dispensada por desnecessária, pois já constava da lei 9.882, aprovada em 3 de dezembro, "sem que ninguém percebesse".
Foi somente então que pude constatar o estrago, que passou despercebido da imprensa e da opinião pública. Na mesma lei, há outro descalabro (artigo 11), que torna possível que uma lei ou ato normativo declarado inconstitucional possa viger como se constitucional fosse por um determinado período, bastando, para tanto, que o STF, por maioria de dois terços, assim o decida.
Imagine que o governo decidisse, por medida provisória, apossar-se dos depósitos bancários da população, e esta recorresse ao Judiciário para questionar a constitucionalidade disso. O STF, mesmo reconhecendo a inconstitucionalidade da medida, não a revogaria. Com base no artigo 11 da lei 9.882, dois terços do Supremo poderiam decidir que a medida, mesmo declarada inconstitucional, só deixaria de viger dentro de, digamos, dois anos, quando seus efeitos fossem irreversíveis.
Já vimos esse filme, mas não com apoio legal explícito.
Em termos práticos, quem quiser repetir o famoso confisco da poupança já dispõe de suporte para torná-lo legal, graças a uma medida aprovada em meio à anarquia de nosso sistema político, um caos organizado, cujo objetivo é exatamente esse: confundir para governar. Ou revemos e racionalizamos nosso sistema político ou continuaremos sendo reféns da bagunça.


Reginaldo Oscar de Castro, 57, advogado, é presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).



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