São Paulo, terça-feira, 14 de março de 2000


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Um homem brilhante


Montenegro deixou para o Brasil uma semente maior que a plantada por Santos Dumont


ALDO VIEIRA DA ROSA

O Brasil tem tido homens brilhantes. Santos Dumont sem dúvida o era, deixando para nós o prestígio de seu nome. Contudo suas invenções não encontraram entre nós o terreno adequado para poderem contribuir diretamente para o nosso desenvolvimento econômico. Honramos Santos Dumont relembrando seus feitos, não obstante a insistência americana de que o avião foi inventado pelos irmãos Wright. Eles, quando muito, inventaram um planador motorizado que tinha que ser catapultado para cobrir uns poucos metros de distância.
Demos o nome de Santos Dumont a um aeroporto e até mesmo à antiga cidade de Palmira. Tudo muito merecido. Brasileiros brilhantes de uma safra bem mais recente deixaram contribuições que, embora menos dramáticas e espetaculares que as dele, prometem resultados mais concretos.
No século 16, quando três potências européias colonizaram as Américas, elas o fizeram segundo três filosofias diferentes. Ingleses, insatisfeitos com as condições na sua ilha, foram à América do Norte para lá se aboletarem sem intenção de voltar para casa. De maneira gradual, criaram um país de enormes dimensões, anexando progressivamente territórios adjacentes.
Espanhóis tiveram a má sorte de descobrir quase imediatamente ouro e prata no México e no Peru -tornaram-se exploradores em vez de colonizadores. Suas possessões se fracionaram, dando origem a muitos países, na sua maioria pequenos.
Os portugueses chegaram ao Brasil com idéias de império e se esforçaram para criar um país grande e único. O estabelecimento e a manutenção da unidade brasileira não foram tarefa trivial. Tivemos que nos defender de franceses e holandeses e, para delinear nossas fronteiras, "bandeiras" tiveram que penetrar profundamente no continente.
A necessidade de defender nossa coesão não cessou. Em meados do século 20 ainda tínhamos limitados contatos com vastas áreas praticamente acessíveis só por canoa. Foi então que surgiu a idéia de usar a Força Aérea Brasileira -FAB- para manter o contato com nossas populações esparsas e ilhadas. Foi criado o Correio Aéreo Nacional (CAN), que contribuiu substancialmente para a manutenção da nossa identidade nacional, estabeleceu nossa presença em muitas capitais de países vizinhos e simultaneamente treinou equipes da Força Aérea e a familiarização com nossas fronteiras.
O CAN foi pioneiro na disseminação de sistema de radionavegação em zonas que não atraíam interesses comerciais. Poucos brasileiros podem aquilatar a contribuição que o CAN fez pela integração nacional. Em países mais cônscios de sua história já teria havido romances, novelas e filmes baseados nas aventuras de seus tripulantes.
Quase 800 anos de ocupação árabe desenvolveram nos espanhóis uma mentalidade acadêmica ausente em Portugal. Não é, portanto, surpreendente o aparecimento de universidades na América espanhola bem cedo e, no Brasil, quase 400 anos mais tarde.
Isso explica o calamitoso estado do ensino superior na nossa terra quando, no início da década de 40, o Ministério da Aeronáutica percebeu que, sem homens preparados, o Brasil nunca realizaria a sua imprescindível vocação aeronáutica. Cabia criar uma instituição de ensino atualizada.
Aproveitando a ausência do ministro da Educação, que viajava pela Europa, foi criado o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (dentro de um Centro Técnico de Aeronáutica), incumbido de formar engenheiros de aeronáutica, de aerovias e de eletrônica. Foram convidados professores de dezenas de nacionalidades e foi adotado ensino nos moldes americanos. O ITA revolucionou o ensino superior brasileiro.
O notável é que tanto o CAN como o CTA foram o resultado dos esforços de um só inovador: Casemiro Montenegro Filho. Curiosamente, Montenegro não era a mais bem-informada pessoa deste mundo. Exagerando bastante, José Vicente de Faria Lima (o da av. Faria Lima, em São Paulo) considerava-o possuidor da mais exagerada relação inteligência/conhecimentos. Supremamente inteligente, mas pouco lido, a grande qualidade de Montenegro foi sempre ver os problemas em traços gerais, deixando pormenores para seus auxiliares. Sua capacidade de contornar obstáculos era inigualável.
Quando da criação do CTA, percebeu logo que seria impossível obter de nosso Congresso a aprovação de uma instituição completamente fora das tradições brasileiras. Mais fácil foi convencer senadores a introduzir no orçamento do Ministério da Aeronáutica um item criando uma verba chamada "Despesas de qualquer natureza com a operação do Centro Técnico da Aeronáutica". O CTA, até então inexistente, foi criado por verba orçamentária.
A história de Montenegro merece estudos, livros, filmes. É por demais longa para este escrito. Montenegro, que morreu com 95 anos há pouco tempo, deixou para o Brasil uma semente maior que a plantada por Santos Dumont. Mas não temos (ainda) uma cidade com o seu nome.


Aldo Vieira da Rosa, 81, doutor em engenharia e brigadeiro-do-ar reformado, é professor emérito da Universidade Stanford (EUA). Foi presidente do Conselho Nacional de Pesquisa, atual CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), e fundador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), em 1963.



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