UOL




São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ SARNEY

Uma guerra contra o Diabo

Graciliano Ramos comentava os editoriais dos jornais de Palmeira dos Índios que condenavam o nazismo. O mesmo acontecia com os jornais de Pinheiro: se Hitler tivesse ouvido o que eles diziam, não teria acontecido o desastre da guerra. Pode parecer que nossas reações e o esforço conjunto do mundo inteiro pela paz sejam ainda gestos de ingenuidade quase romântica. Mas há hoje um novo interlocutor na sociedade, que é a opinião pública. A tecnologia das comunicações individuais e coletivas em tempo real manifesta-se como uma grande força, mostrando o sentimento de que comunga a humanidade.
A posição do senhor Bush dá margem às inevitáveis considerações sobre seus motivos -como a ambição pelo petróleo do Oriente Médio, sempre visto pelos estrategistas como ponto vital. Setenta e sete por cento do petróleo do mundo está nas mãos da Opep -e 65%, no golfo Pérsico. Se não forem encontradas novas reservas, essas se esgotarão na metade do século. A alternativa para substituir os combustíveis fósseis, a viabilidade econômica da fusão nuclear, não estará acessível antes de 30 ou 40 anos.
Acrescente-se a isso o processo interno, o nascimento de um fundamentalismo religioso, estimulado por Bush. As igrejas evangélicas da conversão falam de quatro momentos de despertar: o primeiro, a independência; o segundo, a abolição; o terceiro, a criação do estado de bem-estar social (welfare state); o quarto, a reconversão. O instituto Gallup diz que 68% dos americanos acreditam no Diabo, 48%, no criacionismo -a criação segundo o Gênesis, idéias que o próprio Vaticano já revisou-, contra só 28% que acreditam na teoria da evolução. Quando Bush fala no eixo do mal, não está jogando conversa fora, mas respondendo a pesquisas de opinião pública, dirigindo-se a um sentimento religioso. Vi Larry King na CNN debater a guerra segundo os grupos religiosos. Não é por acaso que todos os dias Bush aparece na TV americana com preces, que aparece rezando na capa de "NewsWeek". É um caminho extremamente perigoso.
O que Bush está fazendo, mais do que a guerra, é desmontar o sistema que a humanidade levou quase 200 anos para construir e ameaçar os direitos individuais e tudo o que foi conquistado durante a paz. Bush já jogou fora o capital da simpatia despertada em todo o mundo pelo ataque às torres gêmeas. Fez leis contra os direitos de opinião e de expressão do pensamento, leis que permitem a escuta telefônica e que quebram o princípio de que não há culpa sem condenação.
As primeiras vítimas de Bush são Tony Blair e José María Aznar. A opinião americana está dividida, como mostram o ex-presidente Carter, a imprensa americana liderada pelo "The New York Times" e os milhões de americanos que enchem a internet com manifestos e abaixo-assinados. A América Latina, o mundo inteiro está contra a guerra. A figura comovente de João Paulo 2º ergue-se sobre todas as dificuldades físicas em sua pregação de fé na paz.
É com grande orgulho que vemos a bandeira azul, branca e vermelha levantada por Chirac como a voz de toda a França e podemos colocar o verde da do Brasil a seu lado.
Meu neto de nove anos mora no Canadá. Falávamos da guerra e ele me disse que, quando vai ao supermercado, verifica a origem do que compra. Se é um produto americano, devolve às prateleiras para que seu dinheiro não se transforme em bombas. Se uma criança de nove anos chega a ser convencida de maneira tão racional, acreditando que assim podemos trabalhar pela paz, temos a dimensão de quanto a truculência, a ostentação de força, fere os sentimentos da humanidade.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Marcelo Beraba: Dois amigos
Próximo Texto: Frases

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.