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JOSÉ SARNEY
Uma guerra contra o Diabo
Graciliano Ramos comentava
os editoriais dos jornais de Palmeira dos Índios que condenavam o
nazismo. O mesmo acontecia com os
jornais de Pinheiro: se Hitler tivesse
ouvido o que eles diziam, não teria
acontecido o desastre da guerra. Pode
parecer que nossas reações e o esforço
conjunto do mundo inteiro pela paz
sejam ainda gestos de ingenuidade
quase romântica. Mas há hoje um novo interlocutor na sociedade, que é a
opinião pública. A tecnologia das comunicações individuais e coletivas em
tempo real manifesta-se como uma
grande força, mostrando o sentimento de que comunga a humanidade.
A posição do senhor Bush dá margem às inevitáveis considerações sobre seus motivos -como a ambição
pelo petróleo do Oriente Médio, sempre visto pelos estrategistas como
ponto vital. Setenta e sete por cento do
petróleo do mundo está nas mãos da
Opep -e 65%, no golfo Pérsico. Se
não forem encontradas novas reservas, essas se esgotarão na metade do
século. A alternativa para substituir os
combustíveis fósseis, a viabilidade
econômica da fusão nuclear, não estará acessível antes de 30 ou 40 anos.
Acrescente-se a isso o processo interno, o nascimento de um fundamentalismo religioso, estimulado por
Bush. As igrejas evangélicas da conversão falam de quatro momentos de
despertar: o primeiro, a independência; o segundo, a abolição; o terceiro, a
criação do estado de bem-estar social
(welfare state); o quarto, a reconversão. O instituto Gallup diz que 68%
dos americanos acreditam no Diabo,
48%, no criacionismo -a criação segundo o Gênesis, idéias que o próprio
Vaticano já revisou-, contra só 28%
que acreditam na teoria da evolução.
Quando Bush fala no eixo do mal, não
está jogando conversa fora, mas respondendo a pesquisas de opinião pública, dirigindo-se a um sentimento
religioso. Vi Larry King na CNN debater a guerra segundo os grupos religiosos. Não é por acaso que todos os dias
Bush aparece na TV americana com
preces, que aparece rezando na capa
de "NewsWeek". É um caminho extremamente perigoso.
O que Bush está fazendo, mais do
que a guerra, é desmontar o sistema
que a humanidade levou quase 200
anos para construir e ameaçar os direitos individuais e tudo o que foi conquistado durante a paz. Bush já jogou
fora o capital da simpatia despertada
em todo o mundo pelo ataque às torres gêmeas. Fez leis contra os direitos
de opinião e de expressão do pensamento, leis que permitem a escuta telefônica e que quebram o princípio de
que não há culpa sem condenação.
As primeiras vítimas de Bush são
Tony Blair e José María Aznar. A opinião americana está dividida, como
mostram o ex-presidente Carter, a imprensa americana liderada pelo "The
New York Times" e os milhões de
americanos que enchem a internet
com manifestos e abaixo-assinados. A
América Latina, o mundo inteiro está
contra a guerra. A figura comovente
de João Paulo 2º ergue-se sobre todas
as dificuldades físicas em sua pregação de fé na paz.
É com grande orgulho que vemos a
bandeira azul, branca e vermelha levantada por Chirac como a voz de toda a França e podemos colocar o verde
da do Brasil a seu lado.
Meu neto de nove anos mora no Canadá. Falávamos da guerra e ele me
disse que, quando vai ao supermercado, verifica a origem do que compra.
Se é um produto americano, devolve
às prateleiras para que seu dinheiro
não se transforme em bombas. Se
uma criança de nove anos chega a ser
convencida de maneira tão racional,
acreditando que assim podemos trabalhar pela paz, temos a dimensão de
quanto a truculência, a ostentação de
força, fere os sentimentos da humanidade.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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