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TENDÊNCIAS/DEBATES
Saberes contingenciados
EDUARDO PORTELLA
A tecnoburocracia inventou,
nesta última década, um vocábulo
de fácil circulação e de difícil aceitação.
É o contingencionamento. O nome não
é dos mais palatáveis e as suas consequências menos ainda. Em geral ele se
anuncia provisório e termina permanecendo indeterminadamente. É um corte
mascarado. Tem sido usado sob o argumento da prudência gestora, da necessária contensão de gastos, porém com
incontrolável brutalidade social. Recai
sobre dotações orçamentárias votadas
pelo Congresso Nacional e homologadas pelo presidente da República. Vem
incidindo, com altas taxas de irracionalidade, sobre áreas tradicionalmente
desguarnecidas, como cultura, educação, ciência.
Esses campos correm o risco de serem
reduzidos a um frágil repertório de saberes contingenciais. É pontual, imediatista, sem deixar de ser temerário. Está
para o saber assim como a subsistência
está para a sobrevivência. Essas operações cotingenciadoras limitam e desestimulam, em vez de vitalizar e agilizar.
Os saberes contidos na educação, na
ciência, na cultura logo se tornam saberes contingenciados. E o saber contingenciado tem tudo a ver com o pensamento único e compartimentado.
As próprias agências de financiamento, com os seus formulários de palavras
cruzadas, estão estruturadas de modo
monodisciplinar, refletindo o imobilismo das antigas especializações e operando na contramão do processo do conhecimento. As disciplinas parecem fechadas dentro de suas grades ou confinadas em algum gueto disciplinar.
Na educação, a mentalidade das corporações prospera assustadoramente,
produzindo inamistosamente grandes
negócios, professores temporários e
pesquisadores descartáveis. Não raro
ela se inclina por oneroso diversionismo, sobretudo no nível superior, promovendo o que venho chamando de
avaliação póstuma. Quando o que nos
cabe é priorizar a qualidade e, para cortar o mal pela raiz, investir criteriosamente nas estruturas básicas. Levar em
conta os que saem da escola com diploma e sem qualificação -e frequentemente sem qualificação nem diploma- e, da noite para o dia, são atirados
na vala comum da exclusão. Por isso o
trabalho pedagógico deve ser um esforço incessante e diversificado, justo e
equitável, todo empenhado em motivar
os recém-chegados e remotivar os desinteressados.
Outro efeito perverso do vírus do contingenciamento vem a ser a queda qualitativa. De nada adianta a maquiagem
estatística, se não somos capazes de reconhecer que só a qualidade promove a
inclusão de populações fadadas ao extravio e, em alguns casos, ao extermínio.
Vale a pena insistir em que a qualidade é
o dever ético da educação. Mesmo sabendo que a qualidade tem seu preço e
que o contingenciamento não está disposto a pagá-lo. A universidade, por
exemplo, está no vermelho há muito
tempo. A pesquisa científica igualmente. Existe também o risco-qualidade,
que os empresários vorazes querem ver
à distância.
O trabalho pedagógico deve ser todo empenhado em motivar os recém-chegados e remotivar os desinteressados
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Com Cristovam Buarque na pasta da
Educação, pelo que ele representa e pelo
que tenho escutado dele, estamos habilitados para corrigir esses desvios.
O andar por esses caminhos pressupõe o mais amplo debate, envolvendo a
comunidade acadêmica e a sociedade
civil, longe, bem longe, das decisões autoritárias. Persistem as baixas cotas de
democratização do nosso sistema educacional. Cabe insistir em que debate
não deve ser a mesma coisa que diálogo
de surdos. Seria um fórum permanente,
sem domicílio fixo, destinado a promover rigorosa discussão cultural. Nada se
constrói no vazio intelectual.
Se sempre foi assim, agora com mais
razão, quando a cultura encontra maiores dificuldades em se localizar entre a
simultaneidade e a interculturalidade. A
simultaneidade nos adverte, às vezes
sem nenhuma receptividade, que a cultura é a uma só vez a ilustrada, a popular
e a de massa. Desequilibrar essa estrutura tripartite significa jogar fora uma
coesão necessária, porque fecunda. A
interculturalidade costuma ser regional
e internacional. De um lado acolhe a diversidade de uma nação e, do outro,
abre as identidades fechadas, trancadas
debaixo de sete chaves, sujeitas a todo
tipo de fundamentalismo.
É preciso deixar a imaginação permeabilizar essas diferentes faixas. E evitar que a ênfase patrimonialista da nossa tradição privilegie a rememoração
em detrimento da verdadeira invenção.
Em todas as três camadas, mesmo com
os incentivos, o descontingenciamento
nunca deve ser descartado. Caso contrário o Estado contingenciaria, estreitamente, a sua própria condição de mediador social.
Em qualquer hipótese, se falamos de
políticas públicas, não há cultura de governo. Há condições culturais preservadas ou amparadas por instâncias governamentais. Elas jamais excluiriam as
dissidências, nem protegeriam as hierarquias artificiosas. Seria a cultura sem
"exceção", uma vez que a "exceção cultural" tem sido o capricho nostálgico de
metrópoles protecionistas.
Ninguém, em sã consciência, está autorizado a ignorar a má gestão financeira. O seu combate eficaz será consequente por meio da revisão radical de
prioridades pelo menos duvidosas. E, se
alguma guerra devemos declarar, é à fome e ao vôo cego do contingenciamento, que explicita a fome do saber.
Eduardo Portella, 70, escritor, é professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
membro da Academia Brasileira de Letras. Foi ministro da Educação, Cultura e Esportes (governo João Figueiredo) e presidente da Conferência Geral da Unesco (1995-1997).
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