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São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Saberes contingenciados

EDUARDO PORTELLA

A tecnoburocracia inventou, nesta última década, um vocábulo de fácil circulação e de difícil aceitação. É o contingencionamento. O nome não é dos mais palatáveis e as suas consequências menos ainda. Em geral ele se anuncia provisório e termina permanecendo indeterminadamente. É um corte mascarado. Tem sido usado sob o argumento da prudência gestora, da necessária contensão de gastos, porém com incontrolável brutalidade social. Recai sobre dotações orçamentárias votadas pelo Congresso Nacional e homologadas pelo presidente da República. Vem incidindo, com altas taxas de irracionalidade, sobre áreas tradicionalmente desguarnecidas, como cultura, educação, ciência.
Esses campos correm o risco de serem reduzidos a um frágil repertório de saberes contingenciais. É pontual, imediatista, sem deixar de ser temerário. Está para o saber assim como a subsistência está para a sobrevivência. Essas operações cotingenciadoras limitam e desestimulam, em vez de vitalizar e agilizar. Os saberes contidos na educação, na ciência, na cultura logo se tornam saberes contingenciados. E o saber contingenciado tem tudo a ver com o pensamento único e compartimentado.
As próprias agências de financiamento, com os seus formulários de palavras cruzadas, estão estruturadas de modo monodisciplinar, refletindo o imobilismo das antigas especializações e operando na contramão do processo do conhecimento. As disciplinas parecem fechadas dentro de suas grades ou confinadas em algum gueto disciplinar.
Na educação, a mentalidade das corporações prospera assustadoramente, produzindo inamistosamente grandes negócios, professores temporários e pesquisadores descartáveis. Não raro ela se inclina por oneroso diversionismo, sobretudo no nível superior, promovendo o que venho chamando de avaliação póstuma. Quando o que nos cabe é priorizar a qualidade e, para cortar o mal pela raiz, investir criteriosamente nas estruturas básicas. Levar em conta os que saem da escola com diploma e sem qualificação -e frequentemente sem qualificação nem diploma- e, da noite para o dia, são atirados na vala comum da exclusão. Por isso o trabalho pedagógico deve ser um esforço incessante e diversificado, justo e equitável, todo empenhado em motivar os recém-chegados e remotivar os desinteressados.
Outro efeito perverso do vírus do contingenciamento vem a ser a queda qualitativa. De nada adianta a maquiagem estatística, se não somos capazes de reconhecer que só a qualidade promove a inclusão de populações fadadas ao extravio e, em alguns casos, ao extermínio. Vale a pena insistir em que a qualidade é o dever ético da educação. Mesmo sabendo que a qualidade tem seu preço e que o contingenciamento não está disposto a pagá-lo. A universidade, por exemplo, está no vermelho há muito tempo. A pesquisa científica igualmente. Existe também o risco-qualidade, que os empresários vorazes querem ver à distância.


O trabalho pedagógico deve ser todo empenhado em motivar os recém-chegados e remotivar os desinteressados


Com Cristovam Buarque na pasta da Educação, pelo que ele representa e pelo que tenho escutado dele, estamos habilitados para corrigir esses desvios.
O andar por esses caminhos pressupõe o mais amplo debate, envolvendo a comunidade acadêmica e a sociedade civil, longe, bem longe, das decisões autoritárias. Persistem as baixas cotas de democratização do nosso sistema educacional. Cabe insistir em que debate não deve ser a mesma coisa que diálogo de surdos. Seria um fórum permanente, sem domicílio fixo, destinado a promover rigorosa discussão cultural. Nada se constrói no vazio intelectual.
Se sempre foi assim, agora com mais razão, quando a cultura encontra maiores dificuldades em se localizar entre a simultaneidade e a interculturalidade. A simultaneidade nos adverte, às vezes sem nenhuma receptividade, que a cultura é a uma só vez a ilustrada, a popular e a de massa. Desequilibrar essa estrutura tripartite significa jogar fora uma coesão necessária, porque fecunda. A interculturalidade costuma ser regional e internacional. De um lado acolhe a diversidade de uma nação e, do outro, abre as identidades fechadas, trancadas debaixo de sete chaves, sujeitas a todo tipo de fundamentalismo.
É preciso deixar a imaginação permeabilizar essas diferentes faixas. E evitar que a ênfase patrimonialista da nossa tradição privilegie a rememoração em detrimento da verdadeira invenção. Em todas as três camadas, mesmo com os incentivos, o descontingenciamento nunca deve ser descartado. Caso contrário o Estado contingenciaria, estreitamente, a sua própria condição de mediador social.
Em qualquer hipótese, se falamos de políticas públicas, não há cultura de governo. Há condições culturais preservadas ou amparadas por instâncias governamentais. Elas jamais excluiriam as dissidências, nem protegeriam as hierarquias artificiosas. Seria a cultura sem "exceção", uma vez que a "exceção cultural" tem sido o capricho nostálgico de metrópoles protecionistas.
Ninguém, em sã consciência, está autorizado a ignorar a má gestão financeira. O seu combate eficaz será consequente por meio da revisão radical de prioridades pelo menos duvidosas. E, se alguma guerra devemos declarar, é à fome e ao vôo cego do contingenciamento, que explicita a fome do saber.

Eduardo Portella, 70, escritor, é professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras. Foi ministro da Educação, Cultura e Esportes (governo João Figueiredo) e presidente da Conferência Geral da Unesco (1995-1997).


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