São Paulo, sexta-feira, 14 de maio de 2004

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JOSÉ SARNEY

Napoleão e o cachorro do Marcelo

Citação é uma coisa perigosa que necessita de oportunidade e memória. Às vezes, abusamos da oportunidade e muitas vezes podemos ter falhas de memória.
O doutor Freiman, grande médico americano e autoridade nessa área, quando me atendeu uma vez nos Estados Unidos, fez-me algumas observações: as pessoas não devem ter preocupação quando, como constantemente acontece com todos nós, esquecem alguma coisa do tipo não saber onde colocamos os óculos. Preocupação devemos ter quando não sabemos para que servem os óculos. Nossa memória, com o tempo, fica como queijo suíço, cheia de buraquinhos. Quando se cai num desses buracos, haja preocupação.
Essas coisas me ocorrem quando vejo a imprensa, numa tarefa vigilante, pegar os políticos em citações impróprias ou erradas. Eu gosto de citar. É sempre bom ter uma companhia autorizada para diminuir nossa vaidade e dizer que, antes da gente, alguém pensou assim. Uma vez eu coloquei um verso como epígrafe de um livro: "Do que fiz e do que não fiz, não cuido agora, as Índias todas falarão por mim". Era um verso de Miguel Torga, e eu repetia e guardava assim. Pois não é que, quando fui fazer a revisão, encontrei escrito "José Régio". Fiquei danado com a datilógrafa. Naquele tempo ainda existia essa profissão. Achei que ela me corrigira e chamei-a, irritado. Ela veio e me disse: "Mas foi o senhor que escreveu". Fui verificar e tinha sido eu mesmo. Como isso tinha acontecido, não sei. Graças a Deus tive tempo de corrigir. Depois, quando visitei Portugal e encontrei o Torga, ele estava furioso com o meu editor português. No meu livro, a palavra "Índia", usada por ele, pois o poema era inspirado em Afonso de Albuquerque, vice-rei da Índia, estava escrita com inicial minúscula, o que modificava tudo e parecia que eram as "índias" que falariam por ele. Tudo tumultuado, pois o herói deixava de falar dos sofrimentos da conquista para ficar no usufruto das nativas.
Agora, dizem os jornais que Napoleão é a bola da vez na escolha para citação. Aliás, não é de agora. Sempre Napoleão foi uma sedução para os políticos. O presidente Castelo Branco uma vez disse a um ministro nomeado: "Cuidado com a família. Napoleão foi o maior homem do mundo e os irmãos o acabaram". Agora, descobrem que o presidente Fernando Henrique disse que era de Napoleão a pergunta: "Quantos fuzis tem o papa? Se não tem nenhum é melhor ficar calado". E dona Lúcia Bastos, professora da Uerj, foi em cima. Já o presidente Lula colocou Napoleão pelejando na China, onde ele nunca esteve, mal passando do Egito e terminando em Santa Helena, embora o grande escritor francês Alain Peyrefitte tenha escrito um livro famoso, "Quando a China Despertar o Mundo Tremerá", essa, sim, expressão de Napoleão.
Tenório Cavalcanti, uma vez, na Câmara, invocou uma citação de Rui: "A locomotiva da honestidade limpará os trilhos da corrupção". Lacerda levantou-se e disse: "Rui nunca disse isso". Tenório respondeu: "Se não disse, digo eu". E todos riram.
Para não deixar de citar, sem medo de errar, cito meu finado e saudoso amigo Marcelo Carneiro Leão, figura admirável de Pernambuco: "A situação está tão difícil que estou latindo no quintal para economizar o cachorro".


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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