São Paulo, sexta-feira, 14 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A verdade sobre o mínimo

ANTHONY GAROTINHO

O governo federal tem afirmado que seria uma irresponsabilidade aumentar o salário mínimo acima dos míseros R$ 260. Se isso fosse feito, a Previdência quebraria. Usando a velha argumentação da equipe econômica de FHC, trabalharíamos com os seguintes números: empresas e trabalhadores contribuem com R$ 91 bilhões para a Previdência básica, enquanto os aposentados e pensionistas recebem R$ 122 bilhões; faltam R$ 31 bilhões para fechar a conta.
A falsidade dessa argumentação começa na afirmação de que as aposentadorias e pensões do regime geral devem ser sustentadas exclusivamente com as contribuições de empresas e trabalhadores do INSS. O artigo 195 da Constituição estabelece que "a seguridade social será financiada por toda a sociedade de forma direta e indireta, nos termos da lei (...) e das seguintes contribuições sociais:
1. Do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalhador pagos ou creditados a qualquer título, a pessoa física que lhe preste serviço mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou faturamento; c) o lucro.
2. Do trabalhador e dos demais segurados da Previdência, não incidindo contribuição sobre aposentadorias e pensões concedidas pelo Regime Geral de Previdência Social de que trata o artigo 201.
3. Sobre a receita de concursos e prognósticos.
4. O imposto de bens ou serviços do exterior ou de quem a lei a ele equiparar".
Percebe-se que, segundo a Constituição, além de contribuírem diretamente com o INSS, as empresas reforçam o caixa de seguridade social com a Cofins e a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). A Receita prevista para essas duas contribuições no Orçamento Geral da União para 2004 é de R$ 75 bilhões da Cofins e R$ 17 bilhões da CSLL. Considerando essas duas contribuições em 2004, a receita de seguridade social será de R$ 183 bilhões. Com o mínimo reajustado para R$ 260, daria para pagar todas as aposentadorias e pensões, sobrando ainda R$ 61 bilhões.


Se a arrecadação da seguridade social tem saldo de R$ 41 bilhões, onde está o déficit do regime geral da Previdência?


"Mas a seguridade social não é só Previdência", lembraria Palocci. Ele está correto. Diz o parágrafo II do artigo 195 da Constituição: "A proposta de orçamento da seguridade social será elaborada de forma integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde, Previdência e assistência social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias".
Além dos R$ 122 bilhões da Previdência gastos com aposentados e pensionistas, o Orçamento Geral da União prevê gastos de R$ 33 bilhões para a saúde e de R$ 13 bilhões para a assistência social, se considerarmos todo o orçamento do Ministério do Desenvolvimento Social e de combate à fome.
Ainda assim, subtraindo os R$ 122 bilhões do pagamento de aposentadorias e pensões, os R$ 33 bilhões da saúde e os R$ 13 bilhões da assistência social do total dos R$ 183 bilhões arrecadados para a área, sobram R$ 15 bilhões.
Agora vem a grande esperteza que é sempre escondida por quem está no poder. A esses R$ 15 bilhões devem ser somados, conforme determina a lei, R$ 26 bilhões da CPMF, que foi criada em 1996 para reforçar o Fundo Nacional de Saúde, adaptado, depois, para partilhar a sua receita com a Previdência em 26% e mais 21% no combate à fome. A CPMF integra o conjunto de contribuições que financiam a seguridade social pelo menos até 31 de dezembro de 2007; é o que determina a Constituição.
Então veja que incrível: os R$ 15 bilhões que sobraram, somados aos R$ 26 bilhões da CPMF, garantem um superávit de R$ 41 bilhões. É dinheiro suficiente para sustentar um aumento substancial do salário mínimo.
Fazendo a pergunta: se a arrecadação da seguridade social tem um saldo de R$ 41 bilhões, onde está o déficit do regime geral da Previdência? A resposta começa por uma sigla: DRU, ou Desvinculação de Receitas da União. Esse mecanismo foi inventado pela equipe econômica do governo Itamar Franco e aperfeiçoado nos governos tucano e Lula. A DRU faz o seguinte: separa um quinto dos impostos e contribuições arrecadados pelo governo federal e, antes de os distribuir, conforme determina a Constituição e as leis orçamentárias, transfere para o caixa da União. Daí o seu nome, DRU.
E para que serve? É um jeito disfarçado de tirar o dinheiro reservado pela Constituição à Previdência, à saúde e à assistência social sem enfrentar abertamente a polêmica que tal procedimento implicaria. Para que são desviados? Para arcar com juros e encargos da dívida pública, que leva R$ 1 de cada R$ 3 dos impostos e contribuições arrecadados pela União. É o dinheiro tomado da sociedade para remunerar o capital, detentor dos títulos da dívida pública por intermédio de bancos, fundos de pensão e de investimentos. Atraído pela gigantesca taxa de juros, deixa de fomentar a produção e o desenvolvimento do país -porque emprestar para o governo é mais seguro e rentável.
A DRU é um mecanismo do tipo Robin Hood às avessas -tira os recursos da seguridade dos pobres para garantir a rentabilidade dos ricos. Esse mecanismo sempre sofreu forte oposição do PT, até Lula assumir o governo. Usar a Previdência para justificar uma suposta falta de recursos que impediria um reajuste decente do salário mínimo é desonestidade intelectual.

Anthony Garotinho, 44, é secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Foi governador do Estado (1999-2002) e prefeito de Campos (1989-92 e 1997-98).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Roberto Romano: Truculências governamentais
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.