São Paulo, sexta-feira, 14 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Truculências governamentais

ROBERTO ROMANO

Em setembro de 2002, a Folha realizou uma série de sabatinas com os candidatos presidenciais. Luiz Inácio Lula da Silva mostrou-se afável, na linha determinada pelo marketing.
Entre as perguntas a ele dirigidas, uma tratava dos nexos entre a possível administração do PT e a mídia: "Governos eleitos na América do Sul enfrentam pesadas críticas da imprensa, às quais tentam responder com atitudes respectivas. Isso ocasiona choques que chegam a ameaçar a estabilidade institucional, como no caso da Venezuela. Qual será a sua política para a mídia internacional e brasileira? Como pretende vossa senhoria se relacionar com os formadores de opinião?".
Resposta tranqüilizadora. Lula revela uma conversa com Hugo Chávez e os bons conselhos que deu ao venezuelano: "Não cabe ao presidente da República dizer que não conversa; ele é presidente de todos. Então você precisa conversar com todo mundo (...) É preciso criar um canal de conversação com a sociedade e restabelecer a tranqüilidade para executar a política social sonhada".
O candidato indica as razões dos ódios contra Chávez: a reforma agrária, a pesca predatória proibida na Venezuela e outros itens da pauta política daquele país. Nada justificaria, segundo o petista, as atitudes de Chávez contra a imprensa. "Chávez, não tem jeito, ou você estabelece uma negociação com a sociedade, com os empresários, mesmo com aqueles que são mais duros contra você, com os donos dos canais de televisão, com os donos dos jornais, para que se estabeleça a possibilidade de governar esse país. Ninguém vai conseguir viver nessa tensão a vida inteira".


Os que se julgam donos do Brasil devem aprender que o poder não lhes foi concedido para intimidações ou vinganças


Prudentes conselhos. Mas a pergunta é sobre Lula. Resposta: "A minha vida inteira só fiz (...) acordos, negociações (...) Não temos nenhum problema de ter algo para assimilar aquilo lá. Até porque, se o cara não quiser conversar comigo, eu vou em cima dele para conversar". E Clóvis Rossi logo comenta: "Ainda bem que é para conversar".
A mansidão da fala não serve ao líder petista. Em almoço na mesma Folha, surge a garra sob a luva de pelica. Interrogado sobre seus atos no passado recente, ele abandona a sala. Não se trata apenas de bons modos -um "presidente de todos" responderia com firmeza, expondo sua posição. Mas, no PT, Lula aprendeu a ser inquestionável. A chusma de bajuladores, liderada por intelectuais, fornece o tom da corte. O "Lulinha paz e amor" é só eleitoral.
Quando o novo presidente ainda se dirigia às massas e não se alojava atrás de vidros embaçados, entrando pelas portas da frente nos edifícios públicos, o nosso embaixador em Cuba deu o tom do verdadeiro poder. Cuba fuzilara pessoas porque fugiam do país. Até aí, as divergências éticas previsíveis no debate governamental e na sociedade. Mas Tilden Santiago rosnou: "Então, se também vierem querer desestabilizar o Lula, nós também teremos que tomar medidas aqui".
As unhas danificam a luva de pelica. Sumiram as entrevistas coletivas à imprensa, choveram medidas repressivas. Dos "radicais" expulsos aos velhinhos nas filas do INSS para "provarem" a sua existência, violências foram cometidas com arrogância inédita. A reforma agrária patina, no Fome Zero tudo está por fazer. As finanças vão bem, os empresários, os trabalhadores, os docentes universitários e a "sociedade" suportam o pior. A segurança pública desaparece, bandidos ensaiam sua soberania nas barbas dos governos legais. E o diálogo amplo, geral, irrestrito?
Um jornalista estrangeiro escreve coisas sobre a vida pessoal do presidente. Em vez de o processar nos tribunais, o governo segue a doutrina Tilden Santiago: expulsão do território. Apesar da truculência de Bush e seus pares, nos EUA ainda resiste a liberdade de imprensa. Se aquele país fosse governado pelos que no Brasil ordenaram a expulsão do correspondente, ninguém saberia das torturas feitas no Iraque.
Enganam-se os que, no episódio, insinuam ameaças à soberania nacional. A soberania prejudicada com a violência do Planalto é a que pertence ao povo brasileiro. Os que se julgam donos do Brasil devem aprender que o poder não lhes foi concedido para intimidações ou vinganças. E, na imprensa, quem cala e apóia a expulsão de um colega deve ficar de sobreaviso. Amanhã, se redações forem invadidas e novos profissionais presos, é preciso saber que a cumplicidade de agora é vital para os ditadores em potência.
Com a expulsão, as luvas de pelica rasgaram-se totalmente. Sobraram apenas as garras dirigidas contra todos os que não se inclinarem diante do poderoso que "vai para cima" dos governados. E não para conversar, mas como senhor da razão.

Roberto Romano, 58, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - a Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).


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