São Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A quina de maio (1968-2008)

JOSÉ ELI DA VEIGA

Desenvolvimento sustentável: considerando os cenários do IPCC, não há causa mais importante para os adolescentes de 2008

GRANDE PARTE das pessoas que estão entre os 50 e muitos e os 60 e poucos só despertou para o mundo e para a vida adulta em 1968. Principalmente em maio, quando ficou impossível ignorar os paralelepípedos arrancados dos "boulevards" de Paris. Algo de muito parecido pode ter ocorrido em 1848, embora registros históricos muito mais precários dificultem a comparação. E os temas foram outros, porque entre os dois houve mudança de época.
O que de fundamental Maio de 1968 desencadeou entre os jovens foi uma adesão a valores e causas estranhos aos seus pais e avós, marcados pelas circunstâncias de duas guerras mundiais que abriram e fecharam a maior crise capitalista. Empunharam bandeiras das quais uma quina permanece bem atual: "paz e amor", "liberdade sexual", "igualdade" (particularmente entre gêneros e etnias), "democracia participativa", mais aquilo que emergiu como "ecodesenvolvimento" e virou "desenvolvimento sustentável".
Boa parte dos engajados foi levada à ilusão de que essa quina poderia ser embutida em militância pelo socialismo e/ou comunismo. O que paradoxalmente fez com que alguns renegassem na prática os cinco valores, enveredando por várias formas de totalitarismo. Muito deles morreram na crença de que o futuro da humanidade estaria sendo puxado por líderes soviéticos, chineses ou cubanos.
Entre os sobreviventes, tiveram muita sorte os que puderam reciclar seus sonhos de forma a resgatar alguns daqueles cinco valores. São os que hoje mais se destacam nas vanguardas das ciências, das artes, da educação, do jornalismo, da edição e de várias religiões, pois nesses campos não é difícil conservar aquele saudável radicalismo que os atirava às passeatas.
Não importa onde estejam e quantas derrotas já tenham acumulado. O fato é que estão comemorando 40 anos de generosa dedicação a algumas das cinco nobres causas enumeradas acima. Por mais utópicas que permaneçam, teriam vergonha de assumir o contrário ante filhos e netos. Filhos e netos que estão aprendendo na escola que a abolição da escravatura também permaneceu utópica por bem mais de um século, desde que essa bandeira foi desfraldada na Inglaterra por pequenos grupos de cristãos. Mas foi o que permitiu acabar em menos de dois séculos com uma prática que por milênios esteve profundamente enraizada em todos os tipos de sociedades dos quatro cantos do globo.
"Desenvolvimento sustentável" é a causa utópica que neste início de século 21 integra quase todos os valores que tiraram da adolescência os jovens de 1968. E depende principalmente da capacidade institucional que está sendo construída para o combate ao aquecimento global.
Se os cenários do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, na sigla em inglês) forem levados a sério, não há causa mais importante para os adolescentes de 2008. Basicamente porque está em jogo uma drástica aceleração do processo que extinguirá a espécie humana. De pouco valerão todas as conquistas por liberdades, igualdades, democracia e mesmo paz se as próximas gerações tiverem que delas abdicar por causa de ameaça de volta à barbárie.
Mas quem disse que é certo se preocupar com as futuras gerações? Por que seria mesmo tão importante evitar que se acelere o processo de extinção da espécie humana? Não há como negar que qualquer resposta a tais perguntas terá fundo eminentemente ético. E nenhuma das poucas tradições da filosofia moral ou das inúmeras religiões se mostrou inteiramente desconectada do processo evolutivo tal como pode ser entendido pela teoria darwiniana.
Isso não quer dizer que códigos morais sejam meros facilitadores adaptativos da vida em sociedade, mas também é impossível supor que sejam inteiramente autônomos.
Assim, mesmo que tenham ficado niilistas alguns daqueles jovens de 1968 que mais se amarguraram com os acontecimentos dos últimos 40 anos, com certeza muitos de seus descendentes irão discordar. E continuarão na linha iluminista de que vale a pena, sim, brigar para que a humanidade rejeite a rampa suicida do aquecimento global.
Por isso, será a utopia do desenvolvimento sustentável que trará novas rupturas do tipo 1968 ou 1848, mesmo que em anos que não terminem por oito.


JOSÉ ELI DA VEIGA, 60, professor titular de economia da USP, está na Universidade de Cambridge como pesquisador associado de seu Capability & Sustainability Centre, com apoio da Fapesp. É autor, entre outras obras, de "Emergência Socioambiental".

www.zeeli.pro.br


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Maurício Rands: Ativismo judicial: é sempre legítimo?

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.