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TENDÊNCIAS/DEBATES
A quina de maio (1968-2008)
JOSÉ ELI DA VEIGA
Desenvolvimento sustentável: considerando os cenários do IPCC, não há causa mais importante para os adolescentes de 2008
GRANDE PARTE das pessoas
que estão entre os 50 e muitos
e os 60 e poucos só despertou
para o mundo e para a vida adulta em
1968. Principalmente em maio, quando ficou impossível ignorar os paralelepípedos arrancados dos "boulevards" de Paris. Algo de muito parecido pode ter ocorrido em 1848, embora
registros históricos muito mais precários dificultem a comparação. E os
temas foram outros, porque entre os
dois houve mudança de época.
O que de fundamental Maio de
1968 desencadeou entre os jovens foi
uma adesão a valores e causas estranhos aos seus pais e avós, marcados
pelas circunstâncias de duas guerras
mundiais que abriram e fecharam a
maior crise capitalista. Empunharam
bandeiras das quais uma quina permanece bem atual: "paz e amor", "liberdade sexual", "igualdade" (particularmente entre gêneros e etnias),
"democracia participativa", mais
aquilo que emergiu como "ecodesenvolvimento" e virou "desenvolvimento sustentável".
Boa parte dos engajados foi levada à
ilusão de que essa quina poderia ser
embutida em militância pelo socialismo e/ou comunismo. O que paradoxalmente fez com que alguns renegassem na prática os cinco valores,
enveredando por várias formas de totalitarismo. Muito deles morreram
na crença de que o futuro da humanidade estaria sendo puxado por líderes
soviéticos, chineses ou cubanos.
Entre os sobreviventes, tiveram
muita sorte os que puderam reciclar
seus sonhos de forma a resgatar alguns daqueles cinco valores. São os
que hoje mais se destacam nas vanguardas das ciências, das artes, da
educação, do jornalismo, da edição e
de várias religiões, pois nesses campos não é difícil conservar aquele saudável radicalismo que os atirava às
passeatas.
Não importa onde estejam e quantas derrotas já tenham acumulado. O
fato é que estão comemorando 40
anos de generosa dedicação a algumas das cinco nobres causas enumeradas acima. Por mais utópicas que
permaneçam, teriam vergonha de assumir o contrário ante filhos e netos.
Filhos e netos que estão aprendendo na escola que a abolição da escravatura também permaneceu utópica
por bem mais de um século, desde
que essa bandeira foi desfraldada na
Inglaterra por pequenos grupos de
cristãos. Mas foi o que permitiu acabar em menos de dois séculos com
uma prática que por milênios esteve
profundamente enraizada em todos
os tipos de sociedades dos quatro cantos do globo.
"Desenvolvimento sustentável" é a
causa utópica que neste início de século 21 integra quase todos os valores
que tiraram da adolescência os jovens
de 1968. E depende principalmente
da capacidade institucional que está
sendo construída para o combate ao
aquecimento global.
Se os cenários do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança
Climática, na sigla em inglês) forem
levados a sério, não há causa mais importante para os adolescentes de
2008. Basicamente porque está em
jogo uma drástica aceleração do processo que extinguirá a espécie humana. De pouco valerão todas as conquistas por liberdades, igualdades,
democracia e mesmo paz se as próximas gerações tiverem que delas abdicar por causa de ameaça de volta à
barbárie.
Mas quem disse que é certo se preocupar com as futuras gerações? Por
que seria mesmo tão importante evitar que se acelere o processo de extinção da espécie humana?
Não há como negar que qualquer
resposta a tais perguntas terá fundo
eminentemente ético. E nenhuma
das poucas tradições da filosofia moral ou das inúmeras religiões se mostrou inteiramente desconectada do
processo evolutivo tal como pode ser
entendido pela teoria darwiniana.
Isso não quer dizer que códigos morais sejam meros facilitadores adaptativos da vida em sociedade, mas
também é impossível supor que sejam inteiramente autônomos.
Assim, mesmo que tenham ficado
niilistas alguns daqueles jovens de
1968 que mais se amarguraram com
os acontecimentos dos últimos 40
anos, com certeza muitos de seus descendentes irão discordar. E continuarão na linha iluminista de que vale a
pena, sim, brigar para que a humanidade rejeite a rampa suicida do aquecimento global.
Por isso, será a utopia do desenvolvimento sustentável que trará novas
rupturas do tipo 1968 ou 1848, mesmo que em anos que não terminem
por oito.
JOSÉ ELI DA VEIGA, 60, professor titular de economia da
USP, está na Universidade de Cambridge como pesquisador associado de seu Capability & Sustainability Centre, com apoio da Fapesp. É autor, entre outras obras, de
"Emergência Socioambiental".
www.zeeli.pro.br
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