São Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 2008

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Ativismo judicial: é sempre legítimo?

MAURÍCIO RANDS

O problema surge quando o juiz extrapola seus poderes e passa a formular políticas públicas, às vezes impondo suas preferências pessoais

QUANDO OS Poderes Executivo e Legislativo não conseguem entregar os serviços públicos que esperamos, somos logo tentados pelas soluções simplistas.
Quando a justiça é lenta, a tentação é a de fazê-la com as próprias mãos.
Quando a reforma política resta paralisada no Congresso Nacional, recorre-se ao Poder Judiciário para que este estabeleça a fidelidade partidária, reduza o número de vereadores ou cancele a cláusula de barreira. Quando se discorda de certa obra pública, pede-se ao Ministério Público que a questione judicialmente.
Quando um partido perde uma votação no plenário da Câmara ou do Senado ou discorda de um ato do Executivo, ingressa com ação direta de inconstitucionalidade, como se o Judiciário fosse uma espécie de "plenário legislativo de segundo grau" (de 2003 até o presente, foram 36 ADIs propostas pelo DEM e 12 pelo PSDB).
A tentação traz ao debate a questão das atribuições e dos limites dos Poderes da República.
Executivo e Legislativo, eleitos pelo voto direto, são os instrumentos através do qual o povo exerce o seu poder soberano (artigos 1º, parágrafo único, e 14, Constituição Federal). A eles cabe a formulação e a execução das políticas políticas. Ao Judiciário, a guarda da Constituição (artigo 102, CF) e das leis. Portanto, é de se indagar: quando e em que circunstâncias é legítimo o chamado ativismo judicial?
O problema surge quando, à guisa de preservar a Constituição ou de interpretá-la, o juiz extrapola seus poderes e passa a formular políticas públicas (ou cancelá-las), às vezes impondo suas preferências pessoais.
O ativismo judicial, um fenômeno há muito discutido aqui e alhures, pode ser definido como o ato de "ignorar o pleno significado da Constituição em favor da visão pessoal do juiz" (Kermit Roosevelt 3º, "The Mith of Judicial Activism", 2006). Ou como a substituição dos Poderes Executivo e Legislativo pelo Judiciário na formulação e execução de políticas públicas.
Pode significar a alienação da soberania popular, expressa através dos mandatários eleitos pelo sufrágio universal, transferindo-a a um corpo técnico não eleito.
Um recente best-seller sobre esse debate nos Estados Unidos (Mark Levin, "Men in Black: How the Supreme Court is Destroying America", 2005) alega que alguns juízes "têm abusado do seu mandato constitucional ao impor suas crenças e preconceitos pessoais ao restante da sociedade. E, assim, têm elaborado a lei, mais do que interpretado-a".
Há muito o assunto tem despertado a observação crítica de grandes presidentes americanos. Em seu discurso inaugural, em 4/3/1861 , Lincoln já advertia que, se as políticas públicas fossem deixadas nas mãos dos juízes, "o povo deixaria de ser seu próprio governante".
Theodore Roosevelt refutou a idéia de que "o povo tivesse entregue a um conjunto de homens o direito de determinação das questões fundamentais sobre as quais depende em última instância o livre autogoverno".
E Franklin D. Roosevelt, seu primo, em defesa do "New Deal" e sua legislação social ameaçada pelo conservadorismo da Suprema Corte, acusou-a de "atuar não como um corpo judicante, mas como um corpo formulador de políticas públicas". Os excessos ativistas podem ser de esquerda ou de direita. A Suprema Corte americana presidida por William Rehnquist foi uma das mais conservadoras e ativistas da história.
A corte que nos anos 50 considerou inconstitucional a segregação racial nas escolas, um exemplo de ativismo de esquerda.
A questão, portanto, não é um debate entre esquerda e direita. Diz respeito à soberania popular na formulação e execução das políticas públicas. Soberania que, no regime constitucional republicano da democracia representativa, é exercida através dos representantes do povo mandatados para exercê-la no Legislativo e no Executivo, sob o controle de constitucionalidade e legalidade atribuído ao Poder Judiciário.
No Brasil, esse debate se torna necessário para o próprio fortalecimento da legitimidade do Judiciário. Muitas das ações que lhe têm sido submetidas buscam pronunciamentos que, em verdade, são da responsabilidade dos outros Poderes. E, com isso, desvia-se o Judiciário das suas reais atribuições, em desserviço ao seu augusto papel de garantidor do Estado democrático de Direito.


MAURÍCIO RANDS, 46, advogado e professor universitário, doutor pela Universidade de Oxford (Inglaterra), é deputado federal (PT-PE) e líder do seu partido na Câmara.

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