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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Chegou a hora de baixar a taxa de juros?

SIM

O enigma do Banco Central

RICARDO CARNEIRO

A trajetória da economia brasileira em 2003 caracteriza-se por dois movimentos inequívocos: a redução continuada dos índices de inflação e a desaceleração do crescimento, acompanhadas de rápida contração em setores essenciais, como a indústria.
Diante desses indicadores, como entender a atitude do Banco Central de se negar a reduzir a elevada taxa nominal de juros, patrocinando, na prática, uma ampliação significativa dessa taxa em termos reais?
Parte do enigma pode ser solucionada tomando como referência os programas de ajustamento de economias emergentes supervisionados pelo FMI. De acordo com Joseph Stiglitz, em seu livro "Globalization and its discontents", as políticas do FMI têm se pautado por uma preocupação quase exclusiva com o desempenho imediato da inflação, deixando de lado dimensões relativas tanto à obtenção de uma estabilidade mais duradoura quanto aos custos da política de deflação. Essa postura tão de agrado dos mercados financeiros é, segundo o economista, claramente inspirada pela ideologia dominante no eixo Wall Street-Tesouro americano.
Apesar da influência determinante do FMI na atual política econômica praticada no Brasil, ela não explica integralmente a conduta do Banco Central. Há dimensões particulares desse enigma que dizem respeito à fixação das atuais metas de inflação pelos gestores da política econômica. Estes, no afã de se mostrarem confiáveis aos mercados financeiros, estabeleceram metas de inflação irreais, somente exequíveis à custa de uma expressiva contração na produção e no emprego.
Todos sabem das dificuldades de operação de um regime de metas inflacionárias no Brasil. O papel da taxa de câmbio na formação de preços reduz a influência da taxa de juros na trajetória de inflação quando das desvalorizações cambiais. O argumento pode ser ilustrado com a composição do IPCA. Nele, os preços diretamente determinados pelo câmbio, os comercializáveis, pesam cerca de 40%. Os indiretamente influenciados pelo câmbio, os monitorados, respondem por algo em torno de 30% do índice, enquanto aqueles livres da influência do câmbio, os não-comercializáveis, ficam com os 30% restantes.
Um exemplo numérico ilustra a dinâmica da inflação vis à vis a trajetória do câmbio. O ano de 2002 é um momento privilegiado para observar essas relações em razão da forte desvalorização nominal da taxa de câmbio, da ordem de 70%. Segundo cálculos do Banco Central, nesse ano aproximadamente 80% da variação dos preços foi explicada pelo movimento do câmbio.
O que dizer da trajetória recente da inflação? Desde janeiro deste ano, os índices são consistentemente declinantes. O IPCA reduz-se de 2,25%, em janeiro, para 0,61%, em maio. A análise desse índice por meio de outras medidas (núcleo, médias aparadas, mediana) indica a mudança de comportamento da inflação. No primeiro trimestre, a propagação dos choques ainda fez os preços decrescerem em velocidades distintas. Nos últimos três meses, essa discrepância de velocidade ainda se manteve, mas com uma novidade, a deflação em parcela do índice.
Examinando o IPCA em detalhe, percebe-se que aqueles preços que apresentam velocidade de queda menor são os monitorados ou administrados, indexados pela inflação passada, com sensibilidade nula ante a taxa de juros. Seguem-se os bens comercializáveis, bastante afetados pelos movimentos da taxa de câmbio e com menor sensibilidade aos juros. Por fim, com desaceleração vertiginosa, os preços livres ou não-comercializáveis, cujo índice de variação em maio foi de nulo.
Diante desses fatos, como entender a resistência do Banco Central em baixar a taxa de juros? Haveria na economia alguma indicação de aquecimento? Ao contrário, a própria política econômica tem sido um fator de agravamento conjuntural da atividade econômica num quadro estrutural muito deteriorado. Salários em queda, aumento do desemprego, restrição fiscal, juros elevados e crédito escasso constituem o pano de fundo da retração do mercado interno, que está sendo conduzido a uma contração inédita da produção industrial, sobretudo pela velocidade que a caracteriza.
Nesse contexto, a posição do Banco Central só é inteligível pela tentativa de manter a credibilidade de metas de inflação irrealistas. Para viabilizá-las, será necessário aumentar a velocidade da queda de preços nos conjuntos menos sensíveis às taxas de juros, implicando maior sacrifício em termos de produção e emprego.
A possibilidade de essa política conduzir a uma recessão de grande magnitude é real. Para evitá-la, há que modificar a política financeira, diminuindo a taxa de juros, que poderia cair até três pontos percentuais sem provocar fuga de capitais do país. É imprescindível também reduzir o compulsório dos bancos, como medida adicional para a reativação do crédito e a volta do crescimento. Tudo isso é possível sem ameaçar a estabilidade. O único preço a pagar será o da revisão das metas irrealistas do Banco Central.


Ricardo Carneiro é professor do Instituto de Economia e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp.


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