São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Para vencer a guerra contra a Aids

LUC MONTAGNIER e JÉRÔME BINDÉ


Sem o HIV, a expectativa média de vida na África seria de 62 anos; atualmente, ela é de 47 anos


Vinte e um anos após a primeira descrição da doença e 19 anos após a descoberta do HIV, a epidemia de Aids continua a se alastrar pelo mundo. Mais de 22 milhões de pessoas já morreram em razão da doença. Quase 40 milhões estão contaminadas com o vírus -e um terço delas tem entre 15 e 24 anos.
Noventa e cinco por cento dos soropositivos vivem em países em desenvolvimento e três quartos na África subsaariana. No ano 2000, quase 5,3 milhões de pessoas foram contaminadas pelo vírus, 3,8 milhões das quais na África. Sem o HIV, a expectativa média de vida na África seria de 62 anos; atualmente, ela é de 47 anos.
Longe de estar estabilizada, a epidemia -que, erroneamente, passa a impressão de estar contida nos países ricos- continua a se alastrar. Hoje há cerca de 5,6 milhões de soropositivos no sudeste e no sul da Ásia. De acordo com a Unaids (programa da ONU de combate à Aids), mais de 1 milhão de pessoas foram contaminadas na China e, ao ritmo em que a epidemia se propaga, essa cifra pode superar os 5 milhões já em 2005. Se a tendência à duplicação anual do número de pessoas contaminadas se mantiver, a Rússia corre o risco de viver uma explosão do flagelo. As próprias estatísticas são insuficientes ou subestimadas em várias regiões. Se não forem tomadas medidas radicais, a pandemia pode matar mais de 100 milhões de pessoas de hoje a 2010.
"Os doentes estão no Sul, e os tratamentos, no Norte" -a frase já deu a volta ao mundo. E é verdade que os países ricos respondem por pouco mais de 4% dos soropositivos em todo o mundo, mas gastam 92% das verbas destinadas à prevenção e ao tratamento da Aids. Esse abismo entre Norte e Sul não pára de crescer há 20 anos. Mas as cifras enganam, na medida em que infundem uma sensação de falsa segurança nas populações dos países ricos. Não haverá quarentena contra a Aids. A infecção continua a correr solta na maioria dos países desenvolvidos. Devido aos limites do tratamento e ao afrouxamento da prevenção, é possível que ela volte a crescer no futuro próximo.
Por que, então, deveríamos desistir? Não devemos, com certeza. Já está claro que não existe fórmula mágica capaz de erradicar a epidemia. Mas a Aids tampouco é nosso destino inevitável. Por negligência, falta de previsão, prevenção e vontade política de longo prazo, já perdemos uma série de batalhas contra ela. Mas não perdemos a guerra.
E é de fato uma guerra de que falamos: precisamos declarar guerra à Aids. Se existe um flagelo que ameaça a civilização mundial, é este. A epidemia de Aids já se tornou uma questão importante para a segurança internacional. Ademais, ela põe em risco o desenvolvimento dos países e a própria idéia do progresso. Podemos vencer esta guerra se nos dotarmos dos meios necessários.
Em primeiro lugar, é preciso reafirmar que as políticas de prevenção, informação e educação são cruciais para refrear o flagelo. Será preciso lembrar que a diversidade do avanço do HIV pelo mundo é espantosa? Enquanto 16 países da África subsaariana já anunciaram índices superiores a 10% de adultos soropositivos, ainda há 119 países onde esse índice é inferior a 1%. Essa diversidade nos permite esperar que o flagelo possa ser brecado em regiões extensas do mundo, desde que sejam implementadas políticas de educação, informação e prevenção em grande escala. Os índices de contaminação já estão caindo no Brasil, na Tailândia e até mesmo em Uganda e no Camboja.
Mas essa política não basta por si só. Como foi enfatizado pelo diretor executivo da Unaids, Peter Piot, ""a prevenção por si só, sem acesso ao tratamento, já deixou de ser aceitável". A experiência da Fundação Mundial para a Pesquisa e a Prevenção da Aids e da Unesco, que vêm cooperando nessa área há mais de dez anos, nos leva a crer que os esforços e investimentos públicos e privados precisam ser voltados, preferencialmente, a três linhas de ação prioritárias: acesso aos tratamentos anti-retrovirais, desenvolvimento de uma vacina preventiva e criação das estruturas necessárias para programas de prevenção, tratamento e pesquisas nos países mais atingidos pela pandemia.
Em primeiro lugar vem o acesso aos tratamentos anti-retrovirais. A experiência ganha nos últimos seis anos nos países ricos mostra que o índice de mortalidade dos soropositivos foi consideravelmente reduzido por meio de terapia anti-retroviral tripla contínua. É eticamente justificado, portanto, como havia solicitado a Unesco em seu relatório de 1999 voltado ao futuro mundial ("O mundo que temos pela frente: o futuro em nossas mãos"), que esses medicamentos sejam disponibilizados a todos os pacientes do Sul que necessitam.
O julgamento de Pretória voltou o foco das atenções mundiais para a batalha que opõe os que defendem os direitos das patentes àqueles que priorizam o direito à saúde. Criado pelo G-8 e a ONU, o Fundo Mundial visa precisamente favorecer o acesso dos pacientes do Sul a essas terapias.
É evidente que podemos nos alegrar pelo fato de o princípio da urgência nacional estar começando a se afirmar, de que o próprio diretor-geral da OMC (Organização Mundial do Comércio) tenha defendido a criação de laboratórios que trabalham com ""preços diferenciados" e de que os grandes laboratórios estão começando a aceitar o princípio dos medicamentos genéricos para os países mais pobres.
Mas a redução do preço dos medicamentos resolve apenas em parte o problema do custo desses tratamentos anti-retrovirais. Isso acontece porque as terapias triplas também pedem consideráveis investimentos em logística, porque os exames médicos para os tratamentos posteriores são caros e porque, diferentemente dos tratamentos de outras doenças crônicas, como a tuberculose, a duração dos tratamentos anti-retrovirais é indefinida.
Além disso, os limites do tratamento anti-retroviral são conhecidos: efeitos colaterais importantes, o surgimento de mutações do vírus que resistem ao tratamento e a dificuldade de manutenção do tratamento a longo prazo.
Ao favorecer a universalização do acesso aos tratamentos anti-retrovirais, é necessário, portanto, lançar exames clínicos que possibilitem tratamentos menos caros e menos tóxicos, que provoquem uma redução duradoura na infecção viral. Aqui os caminhos das pesquisas são múltiplos. É aconselhável, em especial, enfatizar a imunoterapia anti-retroviral específica, o uso racional de antioxidantes e imunoestimulantes e o tratamento dos co-fatores infecciosos.
A introdução de tratamentos efetivos nos países mais atingidos pela Aids teria três efeitos benéficos: reduziria as internações hospitalares e a mortalidade resultante de infecções oportunistas; reduziria a transmissão do vírus, já que os pacientes tratados são menos contagiosos; e aumentaria a eficácia da prevenção por meio da informação, além de favorecer a realização de exames clínicos em massa para a verificação do HIV na população.
Não será preciso relembrar que, mesmo hoje, 95% dos indivíduos contaminados com o HIV não têm consciência disso e, na ausência de qualquer perspectiva de tratamento, muitas vezes nem sequer querem tomar consciência dele.
Uma segunda linha de ação prioritária é o desenvolvimento de uma vacina preventiva. Não é preciso lembrar que uma vacina custa muito menos do que medicação. Vista como caminho de interrupção de uma epidemia, o desenvolvimento dessa vacina preventiva vem se revelando bastante difícil no caso da Aids, especialmente devido à variabilidade do vírus, sua transmissão genital e a dificuldade dos exames.
Ademais, é provável que a vetorização do vírus por proteínas ou membranas micoplasmáticas desempenhe papel importante em sua transmissão sexual. Se isso for fato, qualquer vacina, para ser eficaz, teria que incluir proteínas micoplasmáticas, além de proteínas virais. Isso, por sua vez, implica estudos epidemiológicos avançados para identificar os micoplasmas em questão, que podem variar de uma região geográfica a outra.
Foi empreendido recentemente, graças a financiamento do governo italiano, um projeto de vacinação de crianças nascidas de mães soropositivas (pela equipe do professor Montagnier, em colaboração com as equipes dos professores Vittorio Collizi e Robert Gallo, além de equipes africanas).
A terceira linha de ação prioritária é a criação das estruturas necessárias para programas de prevenção, tratamento e pesquisa nos países mais atingidos -ou seja, principalmente no Sul e no Oriente.
Embora seja os laboratórios dos países ricos tenham um papel importante a desempenhar na acima mencionada pesquisa inovadora, não deixa de ser verdade que o essencial tem que ser realizado in loco nos países mais afetados pelo flagelo: exames clínicos, experimentos com extratos vegetais que possuam propriedades antioxidantes ou imunoestimulantes, acompanhamentos laboratoriais, identificações de co-fatores etc.
É evidente que a disposição política dos governos é uma condição necessária para a criação de tais estruturas, e o apoio internacional também é essencial. Foi assim que a Fundação Mundial de Pesquisas e Prevenção da Aids criou, sob a égide da Unesco e com o apoio do governo da Costa do Marfim, o Cirba (Centro Integrado de Pesquisas Bioclínicas Abidjã), que combina a prevenção por meio da educação com o tratamento de pacientes e o trabalho laboratorial.
Propomos que cada país crie ou desenvolva um centro de referência desse tipo, que, então, poderia ser ampliado para unidades móveis situadas nas áreas rurais. É apenas com a combinação de prevenção, pesquisa e tratamento no mesmo lugar que vamos começar a vencer a guerra contra a Aids.



Luc Montagnier, presidente da Fundação Mundial de Pesquisas e Prevenção da Aids, é co-descobridor do HIV. Jérôme Bindé é diretor da Divisão de Antecipação e Estudos de Perspectivas da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

Tradução de Clara Allain


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