São Paulo, quinta-feira, 14 de outubro de 2004

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A "GUERRA" BRASILEIRA

Enquanto o governo investe dinheiro público em comerciais de TV com o declarado propósito de elevar a auto-estima da população, o jornal britânico "The Independent" publica extensa reportagem a respeito da violência e da atuação do narcotráfico no Rio de Janeiro. A ex-capital federal, eterno símbolo do país no exterior, é chamada pelo diário de "a cidade da cocaína e da carnificina", uma imagem nada agradável para os brasileiros.
Por mais que se possam fazer reparos e apontar exageros, como a comparação com os conflitos no Sudão e na Tchetchênia, não há nada no texto que se desconheça -nem mesmo o apelido de "Faixa de Gaza", dado a uma área da cidade pelos próprios cariocas. Seria preciso uma dose muito elevada de provincianismo para ver na reportagem uma tentativa de distorcer os fatos e macular a imagem do Rio e do Brasil.
Sabe-se que a capital fluminense, embora possa ser um caso extremado, não representa uma realidade isolada no perigoso e inquietante processo de recrudescimento da violência que se observa no país. Esse processo é, por certo, complexo e reproduz desigualdades sociais, como sugere o artigo do ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares, publicado ontem por esta Folha. Os dados disponíveis revelam que as regiões mais pobres do Rio são exatamente aquelas onde os índices de homicídios atingem níveis alarmantes -enquanto nos bairros de classe média e classe média alta as estatísticas não fogem muito do padrão dos países ricos. Algo semelhante ocorre em São Paulo. Ao contrário do que se poderia imaginar, são os mais pobres -e entre eles os mais jovens- as principais vítimas fatais da violência.
As explicações para esse cenário não podem ser buscadas simplesmente nos clássicos "problemas sociais", como a pobreza e a desigualdade. Uma série de fatores conspira para o quadro que se criou nas grandes cidades brasileiras: falta de planejamento, administradores incompetentes, ineficiência policial, Justiça morosa, corrupção de agentes públicos, desestruturação do núcleo familiar, além de fatores psicológicos e culturais ligados à formação de jovens em ambientes marcados pela escassez de oportunidades, nos quais o poder e o rendimento prometidos pelo tráfico de drogas exercem um forte fascínio.
É impossível, no entanto, perder de vista a gigantesca dívida social ainda por saldar. Não se trata de julgar que bastam o crescimento econômico e a distribuição de renda para acabar com a criminalidade, mas, se o Brasil pretende ser um país mais digno e respeitável -e menos violento-, não poderá continuar convivendo com tamanha desigualdade e concentração de riquezas.
Infelizmente, constata-se que, após anos de crescimento econômico medíocre e de persistentes dificuldades para promover a inclusão social, vai-se cristalizando no país uma visão política hegemônica muito pouco ambiciosa, para não dizer resignada, quando se trata de enfrentar os grandes problemas nacionais. Abdica-se da idéia de um esforço planejado e coordenado de desenvolvimento e procura-se administrar as cruéis assimetrias socioeconômicas com benefícios compensatórios, paliativos que podem minimizar o problema, mas não são a resposta definitiva para a exclusão social.
A prolongar-se esse cenário, parcelas inteiras da sociedade continuarão a viver sem perspectivas e será pouco provável que chegue a bom termo essa lastimável "guerra" brasileira.


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