![]() São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2007 |
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Renan e a República
MARCELO O. DANTAS
A NOVELA arrastou-se por cinco meses, tendo um desfecho apenas parcial. Não houve justiça, mudança ou avanço. O sistema fez tudo que podia para preservá-lo: sessões secretas, tráfico de favores, pressões palacianas, violência física. Mesmo diante do clamor da opinião pública, a estratégia era blindar o presidente do Senado, na esperança de que a imprensa cansasse de investigá-lo ou o povo de exigir sua cabeça. Para haver algum movimento, foi necessário antes que todas as máscaras caíssem e o aliado dileto agonizasse em cadeia nacional. Tornado imprestável, foi enfim removido. O sistema continuou intacto. Sustentam alguns de nossos intelectuais que o Brasil sempre foi assim, não restando nada a fazer, além de seguir as regras do jogo. O avanço das políticas sociais, alegam eles, exige o pacto fáustico com as forças do patronato e do clientelismo. Recuso-me a aceitar semelhante postulado. E digo sem medo que esses senhores mentem. Sim, o Brasil formou-se como um país periférico, desigual e injusto. Após 500 anos de história, tais fantasmas continuam a nos assolar. Justamente por isso, devemos hoje redobrar nossos esforços no combate aos entraves políticos e institucionais que nos afastam de um desenvolvimento mais equânime. Aqueles que protegeram com tantos ardis o indefensável ícone da "banda podre" agiram no sentido contrário. Nenhuma nação pode progredir quando se relegam à infâmia os mecanismos constitucionais da representação popular. Uma coisa é diagnosticar os vícios de uma sociedade patrimonialista. Outra, bem distinta, é aceitá-los, manipulá-los e contribuir para sua perpetuação. Nossa República, desde seu surgimento, foi palco de grandes embates. Sempre houve quem enfrentasse de peito aberto os mecanismos de reprodução da injustiça. O positivismo, a candidatura civilista de Rui Barbosa, o tenentismo, o constitucionalismo dos paulistas, o manifesto dos mineiros, o sonho do desenvolvimento, a luta por reformas de base, a resistência democrática ao regime militar, o movimento das Diretas-Já e o próprio surgimento do PT estiveram marcados por um questionamento ético ao modelo desigual da sociedade brasileira e uma crítica moral a seus mecanismos de concentração de renda, assentados sobre a fraude eleitoral, a apropriação privada dos recursos do Estado e a remuneração cartorial dos apaniguados do poder. De modo algum a crítica à corrupção brasileira esteve restrita aos libelos udenistas de Carlos Lacerda. Não existe nada mais retrógrado que a corrupção. Nada mais reacionário. Nada mais contrário à própria idéia de avanço social. A corrupção está na raiz do subdesenvolvimento brasileiro. Ela atua como um vírus insidioso, que destrói o Estado por dentro, alastrando o empreguismo, preterindo funcionários competentes pelos homens-do-esquema, pervertendo o processo decisório, multiplicando ineficiências e desperdiçando montanhas de recursos com rodovias descartáveis, usinas vaga-lume, encomendas que apodrecem, plataformas que afundam, metrôs cavados no pântano, túneis onde ônibus não passam, cestas básicas vazias, remédios que não prestam e livros que nunca chegam às escolas. Toda história se faz como resultante do embate entre os defeitos e as virtudes de um povo. O grande perigo que hoje enfrentamos não é a existência do vírus da corrupção, mas o desaparecimento dos mecanismos de defesa do organismo democrático. Sarney governou com o centrão e deixou o Planalto pela porta dos fundos. Collor quis sagrar-se imperador e teve seu mandato cassado. FHC comprou a reeleição com os votos do fisiologismo, mas não conseguiu eleger um sucessor. Quando 60 milhões de brasileiros decidiram levar o PT ao poder, eles não o fizeram para ver a nação entregue a escândalos sem fim. O pragmatismo irresponsável posto em prática por aqueles que antes se diziam "puros" constituiu uma traição sem precedentes ao eleitorado progressista. Essa passagem de partido programático a partido de programa não ocorreu por fatalidade ou movida por forças impessoais. Foi uma escolha, uma opção consciente de quem despreza a cidadania e julga possível perpetuar-se no poder a partir da utilização agressiva da máquina estatal e da transformação dos programas sociais em um verdadeiro neocoronelismo. "A nação é uma alma, um princípio espiritual", ensinou-me na juventude um outro Renan. "Ela é uma consciência moral. É o desejo de viver juntos e a vontade de continuar a fazer valer essa herança". Quem ataca a consciência moral de nossa pátria quer ferir de morte o Brasil. MARCELO OTÁVIO DANTAS , 43, formado em ciências econômicas pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é escritor, roteirista e diplomata de carreira, autor de "Podecrer!". É chefe da Divisão de Assuntos Multilaterais Culturais do Ministério das Relações Exteriores. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Matilde Ribeiro: Valorizar a diversidade estimula a inclusão Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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