São Paulo, terça-feira, 14 de novembro de 2000

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As penas alternativas e a impunidade


(O projeto de Código Penal) não aperfeiçoa o sistema das penas alternativas já existentes e cria outras ilusórias


GUILHERME DE SOUZA NUCCI

Impunidade é o estado de quem escapa à punição e deixa de ser castigado pelo crime cometido. Prelecionam os mentores do projeto de reforma da parte geral do Código Penal que o caminho para garantir uma "efetiva repressão penal", combatendo a "inaceitável impunidade" no país, tem, como objetivo precípuo, diminuir a possibilidade do delinquente ser preso, aumentando as hipóteses de penas alternativas, isso é, as que prevêem restrições a direitos.
Olvida-se que a única bandeira razoável dentre todas as penas apregoadas é a prestação de serviços à comunidade, aplicada em várias cidades brasileiras com sucesso porque há investimento do poder público, e que permite ao condenado adquirir consciência ética, integrar-se à comunidade e renovar o seu modo de ser e agir.
O projeto, entretanto, com a devida vênia, mantém outras inúteis penas existentes e cria mais algumas, num contexto de pura ilusão reeducativa. Vejamos. São penas alternativas hoje, afora a prestação de serviços:
a) limitação de fim-de-semana (obrigação de permanecer, aos sábados e domingos, por cinco horas diárias, em casa do albergado ou outro lugar adequado, que não existe na maioria dos lugares; durante a permanência, o condenado poderá receber cursos e palestras educativas, que, igualmente, inexistem). Hoje, quando aplicadas, colocam o sentenciado em sua própria casa. Não é uma pena útil nem rigorosa;
b) interdição temporária de direitos (proibição de exercer cargo, função, atividade pública ou mandato eletivo; proibição de exercer profissão, atividade ou ofício que dependa de habilitação ou licença; suspensão de autorização ou habilitação para dirigir veículo, destina-se a crimes de trânsito; proibição de frequentar lugares determinados). Todas elas são impróprias. Proibir alguém no cumprimento de pena de trabalhar é o contrário do que se almeja para a recuperação do ser humano. De que vale impedir, por exemplo, o médico de exercer a medicina durante um ou dois anos? Como ele se sustentará e a sua família? Mudará de profissão durante esse tempo? Se errou no exercício da sua atividade profissional, deve passar por uma reciclagem. A proibição de frequentar lugares chega a ser risível, pois as imposições feitas na prática voltam-se ao impedimento de ir à zona de prostituição (onde está ela localizada em cidades como São Paulo?), a casas de jogos (como se os cassinos clandestinos se mostrassem à vista de todos), a botequins (que existem aos milhares em grandes metrópoles) e outros locais semelhantes. Ninguém fiscaliza, o condenado não a cumpre e a impunidade reina;
c) prestação pecuniária (pagamento em dinheiro à vítima ou a entidade assistencial de uma quantia de 1 a 360 salários mínimos). Não pagando e sendo insolvente, nada há para executar; e
d) perda de bens e valores (perdimento para a União de bens e valores de origem lícita adquiridos antes da prática do delito). Essa é uma penalidade exemplar para o criminoso do colarinho branco, pois o juiz pode efetivamente impor aflição ao rico corrupto. Não vem sendo aplicada porque a maioria dos condenados é pobre.
Diante desse quadro, ao invés do projeto aperfeiçoar o sistema das penas alternativas já existentes, extirpando aquelas que são inofensivas, está propondo a criação de outras, ilusórias.
Veja-se o que está previsto:
a) mantém-se a limitação de fim-de-semana, obrigando-se o sentenciado a permanecer, aos sábados e domingos, por 4 horas (uma hora a menos do que atualmente se prevê), em instituições públicas ou privadas, em atividades educativas, culturais, artísticas ou semelhantes. Enviar-se-ia o condenado a um museu ou a um teatro aos sábados e domingos para participar de atividades artístico-culturais? Só deleite;
b) mantém-se a proibição de exercício funcional ou profissional, o que é um contra-senso à reeducação de quem precisa trabalhar para viver;
c) em lugar da proibição de frequentar lugares, cria-se a pena de suspensão do pátrio poder, da tutela, da curatela ou da guarda ao delinquente que tenha cometido o crime com violação dos deveres inerentes a tais funções. Assim o pai que espanque gravemente seu filho causando-lhe deformidade permanente pode ficar, por dois anos, privado do pátrio poder. O que isso lhe poderia significar de reeducação na prática? Deixaria ele de "mandar" no filho, apenas oficialmente, por dois anos;
d) cria-se, ainda, a penalidade de proibição de habilitação ou autorização para dirigir embarcações ou aeronaves ou de portar arma. O assaltante que se valer de um revólver para tentar roubar pode ficar dois ou três anos proibido de "portar arma". E assaltante carrega arma com porte? Trata-se de pena impossível de ser fiscalizada. E, ainda que fosse, não há nenhuma aflição em o indivíduo deixar de portar um revólver por determinado tempo. Quanto à proibição de dirigir barco ou avião, chega a ser uma situação burlesca. Aplicar-se-ia ao traficante que levasse droga de uma cidade para outra em seu jatinho particular?; e
e) cria-se a pena de proibição de exercício de atividade em corpo de direção, de gerência ou de conselho de administração de instituições financeiras ou de concessionárias ou permissionárias de serviço público. Assim o corrupto administrador que desviar milhões dos cofres públicos ficaria por alguns meses ou anos privado de chefiar instituições financeiras. Essa medida, seguramente, não lhe iria impor aflição nenhuma nem reeducação, pois ele poderia, inclusive, aproveitar para tirar férias e gozar dos milhões desviados. Ou colocaria um "laranja" no seu lugar.
Com tais penas não se combate impunidade nenhuma, mas incentiva-se o criminoso a continuar na sua rendosa atividade. Esperamos que o Congresso seja sensível ao momento difícil vivido pela sociedade e não aprove a aplicação de penas alternativas a delinquentes violentos, como quer o projeto, nem crie mais sanções inúteis.
O único caminho viável é privilegiar a pena de prestação de serviços à comunidade e a perda de bens de valores como alternativas ao encarceramento de criminosos não-violentos, podendo afetar ricos e pobres igualmente, conforme o caso, além de permitirem a correta fiscalização pelo Poder Judiciário.
Direito Penal eficaz constrói-se com autêntico combate à impunidade, e não com penas ilusórias e utópicas.


Guilherme de Souza Nucci, 37, é juiz da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo e professor da Faculdade de Direito da PUC-SP e da Escola Paulista da Magistratura.




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