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As penas alternativas e a impunidade
(O projeto de Código
Penal) não aperfeiçoa
o sistema das penas
alternativas já existentes
e cria outras ilusórias
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GUILHERME DE SOUZA NUCCI
Impunidade é o estado de quem escapa à punição e deixa de ser castigado pelo crime cometido. Prelecionam
os mentores do projeto de reforma da
parte geral do Código Penal que o caminho para garantir uma "efetiva repressão penal", combatendo a "inaceitável
impunidade" no país, tem, como objetivo precípuo, diminuir a possibilidade
do delinquente ser preso, aumentando
as hipóteses de penas alternativas, isso
é, as que prevêem restrições a direitos.
Olvida-se que a única bandeira razoável dentre todas as penas apregoadas é a
prestação de serviços à comunidade,
aplicada em várias cidades brasileiras
com sucesso porque há investimento do
poder público, e que permite ao condenado adquirir consciência ética, integrar-se à comunidade e renovar o seu
modo de ser e agir.
O projeto, entretanto, com a devida
vênia, mantém outras inúteis penas
existentes e cria mais algumas, num
contexto de pura ilusão reeducativa.
Vejamos. São penas alternativas hoje,
afora a prestação de serviços:
a) limitação de fim-de-semana (obrigação de permanecer, aos sábados e domingos, por cinco horas diárias, em casa do albergado ou outro lugar adequado, que não existe na maioria dos lugares; durante a permanência, o condenado poderá receber cursos e palestras
educativas, que, igualmente, inexistem). Hoje, quando aplicadas, colocam
o sentenciado em sua própria casa. Não
é uma pena útil nem rigorosa;
b) interdição temporária de direitos
(proibição de exercer cargo, função, atividade pública ou mandato eletivo;
proibição de exercer profissão, atividade ou ofício que dependa de habilitação
ou licença; suspensão de autorização ou
habilitação para dirigir veículo, destina-se a crimes de trânsito; proibição de frequentar lugares determinados). Todas
elas são impróprias. Proibir alguém no
cumprimento de pena de trabalhar é o
contrário do que se almeja para a recuperação do ser humano. De que vale impedir, por exemplo, o médico de exercer
a medicina durante um ou dois anos?
Como ele se sustentará e a sua família?
Mudará de profissão durante esse tempo? Se errou no exercício da sua atividade profissional, deve passar por uma reciclagem. A proibição de frequentar lugares chega a ser risível, pois as imposições feitas na prática voltam-se ao impedimento de ir à zona de prostituição
(onde está ela localizada em cidades como São Paulo?), a casas de jogos (como
se os cassinos clandestinos se mostrassem à vista de todos), a botequins (que
existem aos milhares em grandes metrópoles) e outros locais semelhantes.
Ninguém fiscaliza, o condenado não a
cumpre e a impunidade reina;
c) prestação pecuniária (pagamento
em dinheiro à vítima ou a entidade assistencial de uma quantia de 1 a 360 salários mínimos). Não pagando e sendo
insolvente, nada há para executar; e
d) perda de bens e valores (perdimento para a União de bens e valores de origem lícita adquiridos antes da prática
do delito). Essa é uma penalidade exemplar para o criminoso do colarinho
branco, pois o juiz pode efetivamente
impor aflição ao rico corrupto. Não vem
sendo aplicada porque a maioria dos
condenados é pobre.
Diante desse quadro, ao invés do projeto aperfeiçoar o sistema das penas alternativas já existentes, extirpando
aquelas que são inofensivas, está propondo a criação de outras, ilusórias.
Veja-se o que está previsto:
a) mantém-se a limitação de fim-de-semana, obrigando-se o sentenciado a
permanecer, aos sábados e domingos,
por 4 horas (uma hora a menos do que
atualmente se prevê), em instituições
públicas ou privadas, em atividades
educativas, culturais, artísticas ou semelhantes. Enviar-se-ia o condenado a um
museu ou a um teatro aos sábados e domingos para participar de atividades artístico-culturais? Só deleite;
b) mantém-se a proibição de exercício
funcional ou profissional, o que é um
contra-senso à reeducação de quem
precisa trabalhar para viver;
c) em lugar da proibição de frequentar
lugares, cria-se a pena de suspensão do
pátrio poder, da tutela, da curatela ou da
guarda ao delinquente que tenha cometido o crime com violação dos deveres
inerentes a tais funções. Assim o pai que
espanque gravemente seu filho causando-lhe deformidade permanente pode
ficar, por dois anos, privado do pátrio
poder. O que isso lhe poderia significar
de reeducação na prática? Deixaria ele
de "mandar" no filho, apenas oficialmente, por dois anos;
d) cria-se, ainda, a penalidade de proibição de habilitação ou autorização para dirigir embarcações ou aeronaves ou
de portar arma. O assaltante que se valer
de um revólver para tentar roubar pode
ficar dois ou três anos proibido de "portar arma". E assaltante carrega arma
com porte? Trata-se de pena impossível
de ser fiscalizada. E, ainda que fosse,
não há nenhuma aflição em o indivíduo
deixar de portar um revólver por determinado tempo. Quanto à proibição de
dirigir barco ou avião, chega a ser uma
situação burlesca. Aplicar-se-ia ao traficante que levasse droga de uma cidade
para outra em seu jatinho particular?; e
e) cria-se a pena de proibição de exercício de atividade em corpo de direção,
de gerência ou de conselho de administração de instituições financeiras ou de
concessionárias ou permissionárias de
serviço público. Assim o corrupto administrador que desviar milhões dos
cofres públicos ficaria por alguns meses
ou anos privado de chefiar instituições
financeiras. Essa medida, seguramente,
não lhe iria impor aflição nenhuma
nem reeducação, pois ele poderia, inclusive, aproveitar para tirar férias e gozar dos milhões desviados. Ou colocaria
um "laranja" no seu lugar.
Com tais penas não se combate impunidade nenhuma, mas incentiva-se o
criminoso a continuar na sua rendosa
atividade. Esperamos que o Congresso
seja sensível ao momento difícil vivido
pela sociedade e não aprove a aplicação
de penas alternativas a delinquentes
violentos, como quer o projeto, nem
crie mais sanções inúteis.
O único caminho viável é privilegiar a
pena de prestação de serviços à comunidade e a perda de bens de valores como
alternativas ao encarceramento de criminosos não-violentos, podendo afetar
ricos e pobres igualmente, conforme o
caso, além de permitirem a correta fiscalização pelo Poder Judiciário.
Direito Penal eficaz constrói-se com
autêntico combate à impunidade, e não
com penas ilusórias e utópicas.
Guilherme de Souza Nucci, 37, é juiz da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo e professor
da Faculdade de Direito da PUC-SP e da Escola
Paulista da Magistratura.
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