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São Paulo, sexta-feira, 14 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Entre a precarização e a democracia

GRIJALBO F. COUTINHO

Ao instituir o Fórum Nacional do Trabalho, o governo pretende discutir com a sociedade mudanças na legislação trabalhista. Argumenta-se que as normas trabalhistas estão ultrapassadas e merecem alteração.
Não custa recordar que o nascimento do direito do trabalho tem origem na luta organizada dos trabalhadores. O caráter protetor que lhe é inerente parte da premissa de que há desigualdade na relação entre capital e trabalho. Sem uma tutela regulatória, o empregador, economicamente mais forte, fixa livremente as condições contratuais e prevalece a lei da selva.
É inegável que o Estado do bem-estar social sofreu abalo a partir dos anos 70, com a crise do petróleo de 1973 e do próprio capitalismo, trazendo transformações na forma de organização da produção capitalista, o enfraquecimento do movimento sindical e o fim do socialismo no Leste Europeu. A revolução tecnológica dos últimos anos reduziu algumas tarefas e retirou muitos postos de trabalho. A liturgia neoliberal, hegemônica desde então, passou a impor a imolação do direito do trabalho perante o altar do mercado globalizado.
Com melancólicos recordes de concentração de renda, salários indecentes e milhões de excluídos, o Brasil assistiu à principal investida contra os direitos dos trabalhadores sob um pretexto -o de que o negociado deveria prevalecer sobre o legislado. A autonomia privada coletiva deve ser consagrada como preceito de emancipação social dos trabalhadores, e não como instrumento de precarização de seus direitos. O resultado da negociação não pode significar a perda das garantias históricas dos cidadãos brasileiros, resultado de muitas lágrimas e sangue. São conquistas que, por isso, não podem ser consideradas mero anacronismo.
A negociação coletiva, aliás, está a exigir uma reforma sindical que consagre a liberdade e o fim das contribuições compulsórias, banindo os sindicatos de carimbo. Não se pode fazê-la, entretanto, sem repensar os mecanismos de financiamento da capacidade de resistência das categorias profissionais. Ainda que a reforma fortaleça os sindicatos, a realidade brasileira não autoriza a prevalência da negociação coletiva sobre as normas sociais contidas na Constituição e na CLT, sob pena de patrocinar o governo do PT um histórico desmonte dos direitos dos trabalhadores, desestruturando a economia nacional.
Ao instalar o fórum, o presidente Lula sinalizou no sentido de que as pequenas e médias empresas podem receber tratamento legal diferenciado através do que já se convencionou denominar "simples trabalhista". Não estamos de acordo com isso. Qualquer distinção entre empregadores deve estar circunscrita ao campo tributário, à política de crédito bancário e ao sistema S (Sesi, Senai e outros). É falso o argumento que considera que o custo da mão-de-obra no Brasil inibe o emprego. O que gera desemprego é a concentração de renda.


O trabalho não pode ser visto como insumo banal da produção. Ele é fundamento da República

Para enfrentar a nova realidade, é preciso reduzir a jornada de trabalho, sem a diminuição remuneratória, coibir as horas extras e instituir política básica de desenvolvimento econômico que privilegie a criação de empregos e de programas de educação e treinamento da mão-de-obra, com a manutenção do sistema de proteção ao trabalho integrado pelas normas gerais e irrenunciáveis contidas nas convenções da OIT e na Constituição. Democratizando a relação entre capital e trabalho e tornando-a mais humana -ou menos selvagem-, o Brasil deve seguir o exemplo de outros países e dar cumprimento à convenção 158 da OIT, que proíbe a dispensa arbitrada.
Reconciliando-se com seu próprio código genético, o presidente Lula precisa cancelar a denúncia feita pelo seu antecessor, tornando efetiva a norma constitucional que assegura proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa.
A reforma trabalhista terá importância no contexto atual se souber preservar as conquistas históricas dos trabalhadores. Sua principal tarefa, no entanto, será a de mudar conceitos equivocados sobre o custo do trabalho e conscientizar os setores empresariais de que é imprescindível distribuir as riquezas, dando dignidade às pessoas. Caso contrário, o tiro sairá pela culatra, pois, não havendo renda, apenas o capital financeiro terá fôlego para continuar especulando, ao lado de multinacionais que abocanharão as pequenas fatias de consumidores.
Reformar sem precarizar interessa aos trabalhadores e aos empresários que apostam no fortalecimento do mercado interno. O trabalho não pode ser visto como insumo banal da produção. Ele é fundamento da República e sua promoção, "conditio" da permanente construção do Estado democrático de Direito.

Grijalbo F. Coutinho, 38, é o presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho).


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