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TENDÊNCIAS/DEBATES
Operação Mãos Limpas já
EMERSON KAPAZ
No século 19, o comércio ilegal
adiou por mais de cem longos
anos a modernização brasileira. Em defesa do mercantilismo, dominante à
época, a Inglaterra afundava os navios
abarrotados de escravos, mas grande
parte da elite teimava em manter o comércio, contra as leis internacionais, na
ilusão de estar enriquecendo. Quando,
afinal, o governo imperial resolveu reagir, reprimindo o tráfico com certa veemência, era tarde. A frota estava no fundo do mar e os poucos navios que sobreviveram não conseguiram acompanhar o passo do comércio exportador.
Assim, o Brasil, que em 1835 disputava espaço com os Estados Unidos na
atração de investimentos e que chegou a
rivalizar com a frota da Inglaterra em
número de navios mercantes, perdeu a
oportunidade de ocupar uma posição
de destaque entre as nações desenvolvidas.
Guardadas as proporções no tempo e
na história, o drama do comércio ilegal
se repete. A novidade é que não envolve
escravos, mas remédios, alimentos,
combustível, peças de automóveis, CDs,
computadores, bebidas, cigarros; enfim, difícil é identificar o que não faz
parte desse mundo subterrâneo que se
propaga cada vez com maior intensidade, gerando violência e alimentando o
crime organizado.
No dia 5 de novembro, esta Folha destacou em manchete: "Crime desafia o
Estado, afirma Lula". Textualmente, citando o presidente: "O crime organizado é mais difícil de combater porque
tem seu braço político, seu braço judiciário, seu braço empresário, seu braço
da sociedade civil" (Primeira Página).
Não faltam evidências de que o presidente tem razão. E, de fato, todos os eixos de gravidade do crime organizado
que enumerou têm seus sólidos vínculos com o comércio ilegal.
A Operação Anaconda, da Polícia Federal, por exemplo, acaba de trazer à luz
um forte esquema de venda de sentenças que ricocheteia na própria PF. No
Congresso, a CPI dos Combustíveis
consumiu seis meses de trabalho na investigação de 30 mil postos, 400 distribuidores e refinarias onde se dissolvem
R$ 15 bilhões em impostos sonegados e
ainda não indiciou ninguém.
Estima-se hoje no Brasil que práticas
antiéticas de sonegação, falsificação e
contrabando, somadas, desviam algo
como R$ 160 bilhões, dinheiro suficiente para financiar um em cada três dos
novos projetos de infra-estrutura indispensáveis à modernização do país. E tudo isso alimentando a miragem de que
o comércio ilegal é fonte de emprego.
Aqui, como aconteceu nos idos do tráfico negreiro, é que entra a cumplicidade
de parte da sociedade civil criticada pelo
presidente Lula.
Crime organizado e comércio ilegal são partes de um mesmo sistema e atuam como vasos comunicantes
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Sim. É hora de o cidadão despertar e
ver que os atentados contra delegacias
de polícia perpetrados pelo Primeiro
Comando da Capital, em São Paulo, e os
atos de terrorismo do Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, têm o mesmo
tronco ancestral. Crime organizado e
comércio ilegal são partes de um mesmo sistema e atuam como vasos comunicantes. Um não existe sem o outro. Se
o cidadão não diz não ao comércio ilegal, quase nada resolvem as leis e as
ações repressivas.
Diante da vasta dimensão dos impasses e dos seus elevados riscos, é urgente
que o governo crie um sistema nacional
de combate à ilegalidade e se some ao cidadão num esforço de união nacional
de modo a fortalecer o consumo legal.
Mais ainda, torna-se inadiável levar à
prática, já, uma operação de impacto
idêntico ao que teve aquela, italiana, batizada com o nome de Mãos Limpas. Lá
o crime organizado só foi vencido depois que a sociedade legal prendeu e julgou juizes, empresários, políticos e policiais corruptos.
Aqui não será diferente. Nos dias
atuais, não sabemos quem é maior, se o
Estado paralelo ou o Estado formal. Em
muitos setores há claros indícios de que
o Estado paralelo é dominante. Por toda
parte há provas inquestionáveis de que
sua destruidora presença supera expectativas e sufoca as práticas legais de concorrência, limitando desde o inalienável
direito de ir e vir do cidadão à sobrevivência das empresas éticas, aquelas que
pagam impostos e investem na qualidade dos seus produtos e serviços.
Essa situação não pode continuar. O
Brasil, diferentemente do que aconteceu no século 19, quando viu os capitais
europeus se volatilizarem, precisa se
afirmar como referência positiva para
os investidores internacionais. E isso só
será possível se o Estado assegurar direitos fundamentais da democracia: o
cumprimento da lei e a segurança dos
cidadãos. Se isso acontecer, naturalmente irão refluir a corrupção, a violência e a exclusão social. E o país estará novamente preparado para crescer, sem
mais perda de tempo.
Emerson Kapaz, 48, é presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial. Foi secretário
da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo (governo Mário Covas).
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