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São Paulo, sexta-feira, 14 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Operação Mãos Limpas já

EMERSON KAPAZ

No século 19, o comércio ilegal adiou por mais de cem longos anos a modernização brasileira. Em defesa do mercantilismo, dominante à época, a Inglaterra afundava os navios abarrotados de escravos, mas grande parte da elite teimava em manter o comércio, contra as leis internacionais, na ilusão de estar enriquecendo. Quando, afinal, o governo imperial resolveu reagir, reprimindo o tráfico com certa veemência, era tarde. A frota estava no fundo do mar e os poucos navios que sobreviveram não conseguiram acompanhar o passo do comércio exportador.
Assim, o Brasil, que em 1835 disputava espaço com os Estados Unidos na atração de investimentos e que chegou a rivalizar com a frota da Inglaterra em número de navios mercantes, perdeu a oportunidade de ocupar uma posição de destaque entre as nações desenvolvidas.
Guardadas as proporções no tempo e na história, o drama do comércio ilegal se repete. A novidade é que não envolve escravos, mas remédios, alimentos, combustível, peças de automóveis, CDs, computadores, bebidas, cigarros; enfim, difícil é identificar o que não faz parte desse mundo subterrâneo que se propaga cada vez com maior intensidade, gerando violência e alimentando o crime organizado.
No dia 5 de novembro, esta Folha destacou em manchete: "Crime desafia o Estado, afirma Lula". Textualmente, citando o presidente: "O crime organizado é mais difícil de combater porque tem seu braço político, seu braço judiciário, seu braço empresário, seu braço da sociedade civil" (Primeira Página). Não faltam evidências de que o presidente tem razão. E, de fato, todos os eixos de gravidade do crime organizado que enumerou têm seus sólidos vínculos com o comércio ilegal.
A Operação Anaconda, da Polícia Federal, por exemplo, acaba de trazer à luz um forte esquema de venda de sentenças que ricocheteia na própria PF. No Congresso, a CPI dos Combustíveis consumiu seis meses de trabalho na investigação de 30 mil postos, 400 distribuidores e refinarias onde se dissolvem R$ 15 bilhões em impostos sonegados e ainda não indiciou ninguém.
Estima-se hoje no Brasil que práticas antiéticas de sonegação, falsificação e contrabando, somadas, desviam algo como R$ 160 bilhões, dinheiro suficiente para financiar um em cada três dos novos projetos de infra-estrutura indispensáveis à modernização do país. E tudo isso alimentando a miragem de que o comércio ilegal é fonte de emprego. Aqui, como aconteceu nos idos do tráfico negreiro, é que entra a cumplicidade de parte da sociedade civil criticada pelo presidente Lula.


Crime organizado e comércio ilegal são partes de um mesmo sistema e atuam como vasos comunicantes

Sim. É hora de o cidadão despertar e ver que os atentados contra delegacias de polícia perpetrados pelo Primeiro Comando da Capital, em São Paulo, e os atos de terrorismo do Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, têm o mesmo tronco ancestral. Crime organizado e comércio ilegal são partes de um mesmo sistema e atuam como vasos comunicantes. Um não existe sem o outro. Se o cidadão não diz não ao comércio ilegal, quase nada resolvem as leis e as ações repressivas.
Diante da vasta dimensão dos impasses e dos seus elevados riscos, é urgente que o governo crie um sistema nacional de combate à ilegalidade e se some ao cidadão num esforço de união nacional de modo a fortalecer o consumo legal. Mais ainda, torna-se inadiável levar à prática, já, uma operação de impacto idêntico ao que teve aquela, italiana, batizada com o nome de Mãos Limpas. Lá o crime organizado só foi vencido depois que a sociedade legal prendeu e julgou juizes, empresários, políticos e policiais corruptos.
Aqui não será diferente. Nos dias atuais, não sabemos quem é maior, se o Estado paralelo ou o Estado formal. Em muitos setores há claros indícios de que o Estado paralelo é dominante. Por toda parte há provas inquestionáveis de que sua destruidora presença supera expectativas e sufoca as práticas legais de concorrência, limitando desde o inalienável direito de ir e vir do cidadão à sobrevivência das empresas éticas, aquelas que pagam impostos e investem na qualidade dos seus produtos e serviços.
Essa situação não pode continuar. O Brasil, diferentemente do que aconteceu no século 19, quando viu os capitais europeus se volatilizarem, precisa se afirmar como referência positiva para os investidores internacionais. E isso só será possível se o Estado assegurar direitos fundamentais da democracia: o cumprimento da lei e a segurança dos cidadãos. Se isso acontecer, naturalmente irão refluir a corrupção, a violência e a exclusão social. E o país estará novamente preparado para crescer, sem mais perda de tempo.

Emerson Kapaz, 48, é presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial. Foi secretário da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo (governo Mário Covas).


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