São Paulo, sábado, 14 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O Senado deve aprovar a ampliação do foro privilegiado?

NÃO

Os novos fidalgos

LUIZ ANTONIO GUIMARÃES MARREY

Mais uma vez volta ao debate a questão do foro privilegiado para determinadas autoridades. É razoável, por ser da nossa tradição jurídico-constitucional, que o presidente da República, os governadores dos Estados e os parlamentares, no exercício do mandato, sejam processados criminalmente perante os tribunais superiores, porque nesse caso o que se protege não é a pessoa física do mandatário, mas essencialmente a dignidade da função, a altitude do cargo e a eminência da posição.
Não se justifica, no entanto, em face dos ideais e princípios republicanos, que essa prerrogativa, instituída pela Constituição Federal em razão do cargo, acabe aderindo permanentemente ao seu titular, que o ocupa em caráter transitório, como pretende o projeto de lei nš 6.295, de 2002, remetido nesta semana pela Câmara dos Deputados ao Senado Federal. Mais grave do que isso, a extensão da prerrogativa significará a outorga de privilégio próprio de mandato popular a ex-mandatário, sem nenhuma razão ponderável que a legitime.
Além disso, os tribunais já se acham sobrecarregados em razão do excessivo número de recursos que nossa legislação processual permite. Nem os crimes eventualmente praticados pelos atuais mandatários são julgados durante o mandato, como seria desejável. O que dizer, então, da possibilidade de esses mesmos tribunais passarem a julgar os ilícitos penais de ex-mandatários?
Como a pauta de julgamento de nossos tribunais obedece, em regra, à ordem cronológica de entrada dos feitos, a perspectiva é que os ex-mandatários sejam julgados antes dos atuais, de forma que estes só serão julgados quando se transformarem em ex-mandatários. Ou seja, de órgãos julgadores de atuais mandatários, os tribunais passarão a julgar apenas ex-mandatários, invertendo a essência da norma constitucional que confere essa prerrogativa.
O próprio Supremo Tribunal Federal foi sensível a essa linha de argumentação ao revogar a Súmula 364, pela qual subsistia sua competência mesmo após encerrados os mandatos eletivos das autoridades sujeitas à sua jurisdição.
Pior ainda, o projeto institui o foro privilegiado para as ações de improbidade administrativa, que atualmente são propostas pelos promotores de Justiça e pelos procuradores da República e apreciadas pelos juízes de primeira instância. Nem se argumente que altas autoridades poderiam ter decretada a perda do cargo por um juiz de primeiro grau, porquanto essa sanção só se torna efetiva quando a sentença é definitiva, não cabendo mais nenhum recurso.
Nossos tribunais não são estruturados para, rotineiramente, proceder à colheita de provas, e isso é compreensível sem maior esforço, pois não foram concebidos especificamente para essa função. Não é por outra razão que os atos de autoridade submetidos ao controle imediato dos tribunais reclamam, normalmente, a pré-constituição das provas, com a consequente remessa das partes às vias ordinárias (e aos juízos comuns) sempre que haja alguma questão de fato relevante e ela não possa ser resolvida com a mera exibição de documentos. Bem por isso, são raríssimos os casos em que a instrução é feita, diretamente, pelos tribunais.
No caso das ações de improbidade administrativa, a produção de provas (documentos, testemunhas, perícias etc.) é essencial para o êxito da demanda. Daí por que, acertadamente, hoje essas ações estão a cargo dos promotores de Justiça e juízes de primeira instância, na qual a proximidade e conhecimento dos fatos possibilita a melhor compreensão e instrução dos feitos.
Imagine-se, no Estado de São Paulo, onde há 645 prefeitos, se seus eventuais atos de improbidade tiverem de ser apreciados pelo Tribunal de Justiça. Como seus desembargadores não poderão colher diretamente as provas, já que é inviável que se dediquem simultaneamente a essa atividade e ao julgamento dos recursos, será inevitável que deleguem essas funções aos juízes de primeira instância, ocasionando um demorado trâmite de processos entre a capital e as várias comarcas do Estado, o que só privilegiará a impunidade.
Aliás, é preciso que se registre que a concessão de foro privilegiado em matéria penal aos prefeitos municipais pela Constituição de 1988 diminuiu sensivelmente o número de condenações a eles impostas, fato a indicar que a extensão da prerrogativa pretendida pelo projeto não contribuirá para o combate à improbidade administrativa.
Estranha o Ministério Público que setores das nossas elites queiram insistentemente alterar um sistema reconhecido pela sociedade e que vem funcionando e produzindo a condenação de inúmeros agentes públicos à devolução ao erário de altas somas, contribuindo para o aperfeiçoamento de nossas instituições e do próprio regime democrático.
A monarquia foi extinta há mais de cem anos, mas alguns querem que nossa República tenha seus fidalgos. A extensão das hipóteses de foro privilegiado pode atender às expectativas de atuais e futuros ex-mandatários, mas certamente não atende ao interesse público e aos ideais republicanos.


Luiz Antonio Guimarães Marrey, 47, é procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo. Exerceu o mesmo cargo de 1996 a 2000 e foi presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça em 1997.



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: O Senado deve aprovar a ampliação do foro privilegiado?/Romero Jucá/Sim: O foro não é privilégio

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.