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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Senado deve aprovar a ampliação do foro privilegiado?
NÃO
Os novos fidalgos
LUIZ ANTONIO GUIMARÃES MARREY
Mais uma vez volta ao debate a
questão do foro privilegiado para
determinadas autoridades. É razoável,
por ser da nossa tradição jurídico-constitucional, que o presidente da República, os governadores dos Estados e os
parlamentares, no exercício do mandato, sejam processados criminalmente
perante os tribunais superiores, porque
nesse caso o que se protege não é a pessoa física do mandatário, mas essencialmente a dignidade da função, a altitude
do cargo e a eminência da posição.
Não se justifica, no entanto, em face
dos ideais e princípios republicanos,
que essa prerrogativa, instituída pela
Constituição Federal em razão do cargo, acabe aderindo permanentemente
ao seu titular, que o ocupa em caráter
transitório, como pretende o projeto de
lei nš 6.295, de 2002, remetido nesta semana pela Câmara dos Deputados ao
Senado Federal. Mais grave do que isso,
a extensão da prerrogativa significará a
outorga de privilégio próprio de mandato popular a ex-mandatário, sem nenhuma razão ponderável que a legitime.
Além disso, os tribunais já se acham
sobrecarregados em razão do excessivo
número de recursos que nossa legislação processual permite. Nem os crimes
eventualmente praticados pelos atuais
mandatários são julgados durante o
mandato, como seria desejável. O que
dizer, então, da possibilidade de esses
mesmos tribunais passarem a julgar os
ilícitos penais de ex-mandatários?
Como a pauta de julgamento de nossos tribunais obedece, em regra, à ordem cronológica de entrada dos feitos, a
perspectiva é que os ex-mandatários sejam julgados antes dos atuais, de forma
que estes só serão julgados quando se
transformarem em ex-mandatários. Ou
seja, de órgãos julgadores de atuais
mandatários, os tribunais passarão a
julgar apenas ex-mandatários, invertendo a essência da norma constitucional que confere essa prerrogativa.
O próprio Supremo Tribunal Federal
foi sensível a essa linha de argumentação ao revogar a Súmula 364, pela qual
subsistia sua competência mesmo após
encerrados os mandatos eletivos das
autoridades sujeitas à sua jurisdição.
Pior ainda, o projeto institui o foro
privilegiado para as ações de improbidade administrativa, que atualmente
são propostas pelos promotores de Justiça e pelos procuradores da República e
apreciadas pelos juízes de primeira instância. Nem se argumente que altas autoridades poderiam ter decretada a perda do cargo por um juiz de primeiro
grau, porquanto essa sanção só se torna
efetiva quando a sentença é definitiva,
não cabendo mais nenhum recurso.
Nossos tribunais não são estruturados
para, rotineiramente, proceder à colheita de provas, e isso é compreensível sem
maior esforço, pois não foram concebidos especificamente para essa função.
Não é por outra razão que os atos de autoridade submetidos ao controle imediato dos tribunais reclamam, normalmente, a pré-constituição das provas,
com a consequente remessa das partes
às vias ordinárias (e aos juízos comuns)
sempre que haja alguma questão de fato
relevante e ela não possa ser resolvida
com a mera exibição de documentos.
Bem por isso, são raríssimos os casos
em que a instrução é feita, diretamente,
pelos tribunais.
No caso das ações de improbidade administrativa, a produção de provas (documentos, testemunhas, perícias etc.) é
essencial para o êxito da demanda. Daí
por que, acertadamente, hoje essas
ações estão a cargo dos promotores de
Justiça e juízes de primeira instância, na
qual a proximidade e conhecimento dos
fatos possibilita a melhor compreensão
e instrução dos feitos.
Imagine-se, no Estado de São Paulo,
onde há 645 prefeitos, se seus eventuais
atos de improbidade tiverem de ser
apreciados pelo Tribunal de Justiça. Como seus desembargadores não poderão
colher diretamente as provas, já que é
inviável que se dediquem simultaneamente a essa atividade e ao julgamento
dos recursos, será inevitável que deleguem essas funções aos juízes de primeira instância, ocasionando um demorado trâmite de processos entre a capital e as várias comarcas do Estado, o
que só privilegiará a impunidade.
Aliás, é preciso que se registre que a
concessão de foro privilegiado em matéria penal aos prefeitos municipais pela
Constituição de 1988 diminuiu sensivelmente o número de condenações a eles
impostas, fato a indicar que a extensão
da prerrogativa pretendida pelo projeto
não contribuirá para o combate à improbidade administrativa.
Estranha o Ministério Público que setores das nossas elites queiram insistentemente alterar um sistema reconhecido pela sociedade e que vem funcionando e produzindo a condenação de inúmeros agentes públicos à devolução ao
erário de altas somas, contribuindo para o aperfeiçoamento de nossas instituições e do próprio regime democrático.
A monarquia foi extinta há mais de
cem anos, mas alguns querem que nossa República tenha seus fidalgos. A extensão das hipóteses de foro privilegiado pode atender às expectativas de
atuais e futuros ex-mandatários, mas
certamente não atende ao interesse público e aos ideais republicanos.
Luiz Antonio Guimarães Marrey, 47, é procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo.
Exerceu o mesmo cargo de 1996 a 2000 e foi presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça em 1997.
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