São Paulo, segunda, 14 de dezembro de 1998

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A dor que não sai no jornal


Algum homem diria "Querida, como você se aposenta na mesma idade que eu, passarei a cozinhar e lavar roupa"?


MARINA SILVA e MARTA SUPLICY

Talvez a imortal Amélia, "mulher de verdade", pudesse demonstrar compreensão e paciência ao ouvir o presidente lamentar que no Brasil existam regras que permitem às mulheres "aposentar-se mais cedo que os homens". Para o governo, tal "privilégio" é um grande problema para as finanças nacionais; onera a Previdência.
Ocorre que as mulheres são mais longevas que os homens, se aposentam mais cedo e recebem por mais tempo, explica didaticamente o professor Fernando Henrique Cardoso.
Neste momento, as mulheres da Amazônia realizam seu primeiro encontro internacional. Seria bom se os inteligentes homens do governo ouvissem as histórias contadas por parteiras, professoras, índias, artesãs, sindicalistas, enfermeiras e muitas outras conhecedoras da condição feminina numa das regiões mais pobres do mundo.
Lá estarão representantes do Alto Juruá, região onde as mulheres dos seringueiros desenvolveram um costume peculiar: para cada filho morto ou natimorto, elas confeccionam uma pequena cruz de madeira, que fica pendurada na parede como uma lembrança, ao mesmo tempo, carinhosa e triste.
Quem não tem sensibilidade para ouvir histórias talvez se interesse pelos números de uma pesquisa da Contag (Confederação dos Trabalhadores na Agricultura) sobre a vida das mulheres no campo: 52,8% delas tiveram um filho natimorto e 10,1%, mais de quatro filhos nessa condição. Nas cidades, o aborto não-induzido tem índice de 10%; na zona rural, ele chega a 42%.
Por que isso acontece? Certamente, pelas dificuldades da vida: 56,6% das mulheres do campo começam a trabalhar antes dos dez anos de idade. Antes dos 15, 89,9% já estão dando duro no roçado. Logo terão de fazer isso sem descuidar da casa; depois de "arranjar marido", será também necessário lavar roupa, fazer comida e cuidar das crianças. Que são muitas, apesar da mortalidade, pois essas mulheres engravidam ainda muito jovens (60,6%, entre 15 e 21 anos) e têm muitos filhos: 50% delas têm cinco ou mais, 24% delas chegam a ter nove filhos.
Se nosso olhar alcançar a múltipla realidade das mulheres brasileiras, urbanas e rurais, a identificação aparecerá sempre nas diversas jornadas e nas desigualdades. A "distorção" que o presidente aponta existe, sim. Mas é uma distorção cultural, que precisa ser mudada, e não da Previdência. Uma desigualdade que precisa ser compensada por políticas públicas (incluindo o tratamento diferenciado na Previdência) enquanto a igualdade não vem.
A sra. Ruth Cardoso afirmou que as mulheres precisam lutar pela mudança das relações homem/mulher e não por "privilégios". É preciso acabar com a cultura que submete a mulher a relações desiguais e ao descaso governamental, que a cumula de ônus pela falta de políticas sociais. Concordamos. Como também é preciso acabar com a ordem social injusta, que mantém a pobreza e as desigualdades.
Alguém perguntaria: será que ela está certa? Será que, se continuar a aposentadoria diferenciada, não será adiada a mudança cultural e reforçado o status quo? Ora, alguém defenderia o fim das cestas básicas do Comunidade Solidária porque a miséria é resultado de uma injustiça que precisa ser combatida?
O presidente e a sra. Ruth, com a responsabilidade que têm perante a nação, deveriam saber que nenhuma lei vai mudar da noite para o dia a condição das mulheres, o envolvimento dos homens com as questões domésticas ou a prioridade das políticas públicas.
O presidente parece não estar nem aí com a realidade das mulheres; e duvidamos que a sra. Ruth acredite que a falta de compensação pelas agruras apresse a mudança. Será que, com a mudança legal, algum homem chegaria à sua casa e diria "Querida, como agora você se aposenta na mesma idade que eu, passarei a cozinhar e lavar roupa"?
A aposentadoria diferenciada para as mulheres poderá, um dia, não ser mais necessária; mas os dados mostram que, infelizmente, continua plenamente justificada. Parece que poucos no governo conhecem os problemas e o dia-a-dia da zona rural, dos chamados povos da floresta ou mesmo da grande maioria das mulheres de nossas cidades. Talvez porque, parafraseando Chico Buarque, "a dor dessa gente não sai no jornal".


Marina Silva, 40, historiadora, é senadora pelo PT do Acre e membro titular da Comissão de Assuntos Sociais do Senado. Marta Suplicy, 53, psicanalista, é deputada federal pelo PT de São Paulo, vice-líder do partido e membro da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara. E-mail: msuplicy@solar.com.br





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