São Paulo, terça-feira, 15 de janeiro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O desafio da cidade informal

ALFREDO SIRKIS

Ao contrário das grandes enchentes dos anos 60 e 80, tanto as de 1996 quanto as do final de 2001 não provocaram grandes desmoronamentos em favelas situadas nos morros cariocas, apesar de seu vertiginoso crescimento. Essa situação, que contrasta com a de outros municípios fluminenses, deve-se às obras de contenção realizadas pela Fundação Geo-Rio nas principais áreas de risco ao longo de três décadas e ao trabalho de reflorestamento realizado pelos mutirões remunerados.
Os mutirões foram iniciados em 1989 e acelerados a partir de 1994, cobrindo mais de mil hectares em cerca de 60 comunidades e treinando mais de um milhar de reflorestadores comunitários -uma vez encerrado o subsídio de cinco anos do mutirão remunerado, eles têm como opção de trabalho uma cooperativa de reflorestamento e arborização criada com apoio da prefeitura.
Já o programa Favela-Bairro, cofinanciado pelo Banco Mundial e iniciado em 1994, busca lidar com a transição da cidade informal para a formal. É um desafio complexo, a começar pela sua magnitude: no caso do Rio de Janeiro, dependendo do indicador de informalidade construtiva que utilizemos -se a ausência de IPTU ou se a ausência de habite-se-, cerca de 40% ou até mais de 50% das edificações estão fora da lei.
O Favela-Bairro representou um avanço importante em relação às políticas anteriores, quer as de "erradicação", dos anos 60, quer as de estimulo à favelização e à sua manipulação pelo populismo. Espaços públicos foram criados, a acessibilidade foi aumentada, foram implantados novos equipamentos desportivos e foram urbanizadas áreas de favelas, mas não conseguimos, ainda, garantir a sustentabilidade dessas melhorias, muitas vezes perecíveis.
Os riscos maiores residem na rápida degradação de benfeitorias e espaços reurbanizados e no estímulo de um maior afluxo, criando novas favelas na floresta, acima das recém-urbanizadas. Outro risco é o controle predatório, pelo tráfico de drogas, dos novos equipamentos desportivos e de lazer, desalojando os legítimos líderes das comunidades para ali instalar seus prepostos.


Podemos fazer as nossas cidades ambientalmente mais saudáveis e socioeconomicamente menos segregadas
Esses novos problemas de forma nenhuma condenam o Favela-Bairro, que continua a ser implementado -embora sem os caros comerciais de TV- em comunidades de 14 bairros diferentes. Eles alertam, no entanto, para a necessidade de articular o programa com outras intervenções sociais, culturais e ambientais, implantando projetos de geração de renda e emprego (mutirões de reflorestamento, saneamento, catação e reciclagem de lixo) que também facilitem a negociação de pactos de autolimitação do crescimento e de proteção das áreas de risco e das áreas verdes.
Isso implica também estimular, de forma sutil e sem as clássicas manipulações político-eleitoreiras, a rearticulação de lideranças comunitárias não-vinculadas ao tráfico de drogas.
Nas atuais circunstâncias, elas dificilmente podem se contrapor frontalmente ao banditismo, mas conseguem trabalhar de forma independente quando sua ação é reconhecida e respeitada, na comunidade, pela competência em criar e/ou gerir projetos culturais, educativos, ambientais, desportivos e outros que atendam aos moradores sem as manipulações, os favorecimentos e as discriminações características do controle exercido tanto pelo tráfico quanto pelos políticos clientelistas, por vezes até mesmo em conluio.
Outro aspecto vital é estender o pleno direito de propriedade à maior parte possível da cidade informal via regularização e titulação: retirar do limbo socioeconômico e legal todas essas casas construídas em terras cujos direitos de propriedade não estão adequadamente registrados e não podem ser incluídos na economia formal nem negociados fora dos estreitos círculos locais.
Esse é um problema cuja solução pode ser facilitada pelo poder local, embora passe inevitavelmente pelo Judiciário e pelo sistema cartorial. E é absolutamente vital o acesso da população de baixa renda ao crédito imobiliário, fechado durante décadas, que agora começa a se abrir, aos poucos.
Um dos principais estímulos à informalidade, sobretudo no caso das zonas norte e oeste do Rio de Janeiro, está na própria legislação urbanística, demasiado burocrática, prolixa e muitas vezes fora da realidade socioeconômica e cultural dessas regiões. O descompasso entre o legal e o real criou uma esquizofrenia cujo resultado foi a explosão da informalidade. Um aspecto crucial da integração desses assentamentos à cidade formal é a criação de regras próprias de uso do solo e de edificabilidade, adaptadas às condições locais e negociadas entre os poderes públicos, as comunidades e os demais interessados.
É preciso repactuar e deixar claro quem pode construir o quê. E de que maneira, onde e sob que condições mínimas de segurança, salubridade e conforto ambiental. Com esse conjunto de ações, poderemos lentamente reverter um dos maiores problemas das nossas cidades e periferias e enfrentar o desafio de fazê-las ambientalmente mais saudáveis e socioeconomicamente menos segregadas e partidas.


Alfredo Sirkis, 51, jornalista, é secretário municipal de Urbanismo do Rio de Janeiro e membro fundador do Partido Verde. É autor do livros "Os Carbonários" (Ed. Record).


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