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São Paulo, sábado, 15 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O governo deve centralizar a venda de energia?

SIM

Energia para todos

ILDO SAUER

O governo deve reorganizar o setor elétrico, a fim de articular o desenvolvimento das forças produtivas em benefício do país. A abstenção do governo FHC de gerir a energia, entregando-a à regência do "mercado", causou o brutal racionamento -que se deu sob condições hidrológicas normais.
Hoje o Brasil não tem política energética, perdeu sua capacidade de planejamento e estava perdendo a grande vantagem comparativa da hidroeletricidade. Há oito anos não há regulamentação estável, indefinições fundamentais persistem, empresas geradoras têm prejuízos e distribuidoras se dizem quebradas. Tudo isso apesar de essas empresas não terem feito os investimentos necessários e terem suas tarifas reajustadas muito acima da inflação. A receita adicional devida aos aumentos acima da inflação é calculada em mais de R$ 13 bilhões! Eis o grande atrativo do atual modelo. Tanto famílias estão reduzindo seu conforto como as atividades produtivas estão perdendo competitividade.
A quem serve esse modelo?
Esse modelo energético de alto risco foi deslegitimado técnica e politicamente, visto que todos os candidatos a presidente propugnaram sua mudança. Se fosse totalmente implantado, o resultado seria ainda pior, pois a escalada das tarifas atingiria também as empresas geradoras de eletricidade, ainda estatais. A privatização das geradoras estatais tenderia a duplicar o preço de sua energia, que passaria a ser negociada a preços de mercado, dados pelo custo das novas usinas, termelétricas a gás -cerca de US$ 40 por MWh.
Houve falta de investimento -o que causou o racionamento- porque esse modelo maximiza a percepção dos riscos do investidor, que passa a exigir maiores taxas de retorno, onerando a energia. Internacionalmente, aumentam as dúvidas quanto à viabilidade da competição no caso da energia elétrica, produto homogêneo, com altos custos fixos e dependente de afluências hidrológicas, que variam no tempo. Mais, desconfia-se da capacidade de auto-regulação, pelo mercado, para viabilizar a expansão dos sistemas elétricos.
Em nosso sistema elétrico os preços dependem fortemente da hidrologia (chuvas), gerando riscos que afetam todos os contratos, mesmo os de longo prazo. Nessa realidade, um regime de competição de curto prazo fica assemelhado a um jogo de apostas, e não se presta a orientar os investimentos do setor, que são elevados e com longos prazos de retorno. O modelo vigente não atende e não será capaz de atender às necessidades do setor elétrico brasileiro.
A competição deve ser promovida onde ela beneficie a sociedade; a atual competição no mercado (pelo kWh já produzido) deve ser mudada para competição pelo mercado (pelo novo kWh advindo da expansão do sistema). Os riscos hidrológicos e comerciais seriam assumidos, de modo racional e cooperativo, por um condomínio do tipo "comprador majoritário" (que não é um comprador único), operado por uma empresa pública com modelo de gestão apropriado -seu caixa seria administrado por uma Câmara de Liquidação e Custódia com plataforma operacional de um grande banco. O condomínio seria o dono da energia e da água; o investidor seria contratado apenas para construir ou operar as instalações. Sua capacidade empresarial seria direcionada para a busca de um pacote de financiamento mais barato, melhor projeto de engenharia, melhor gerência e engenharia de construção, de operação e manutenção.
Portanto uma competição voltada a menores custos e direcionada aos investimentos, indicados por um sistema de planejamento de longo prazo. O plano de expansão elaborado no âmbito do setor seria submetido à contestabilidade pública. O programa resultante seria licitado pelo critério de menor custo, para operar sob o regime de serviço público, pelo prazo necessário à recuperação do investimento em sua vida útil.
O mercado atacadista seria residual, organizado e custeado pelos próprios agentes, e o operador do sistema racionalizaria seus custos, assumindo um caráter público, menos sensível a pressões econômicas. O governo, via Conselho Nacional de Energia e Águas e Ministério de Minas e Energia, deve reassumir o papel de órgão central de formulação de políticas públicas e planejamento, viabilizando capacitação estratégica. As agências reguladoras devem ser fortalecidas e democratizadas, suas funções -restritas à fiscalização dos contratos de concessão e da qualidade dos serviços- devem ser descentralizadas, no que for viável, para os Estados e abertas às diversas formas de controle social.
O modelo proposto permite a existência de produtores independentes e de consumidores livres que queiram adquirir sua energia. Ele apenas previne que aquela parte da sociedade que não pode agir dessa forma fique refém dos especuladores. Não se propõe a estatização, mas a organização de um condomínio disciplinado pelo governo, com garantias colaterais para redução dos riscos e aumento da eficiência.
Não deve haver preconceito contra a iniciativa privada nem contra o disciplinamento governamental. O importante é que o sistema elétrico funcione.


Ildo Sauer, engenheiro, professor do Programa de Pós-Graduação em Energia da USP, é diretor de Gás e Energia da Petrobras.


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