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São Paulo, terça-feira, 15 de abril de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O fanfarrão

RIO DE JANEIRO - A palavra está no "Aurélio" e no "Houaiss", sei o que significa mesmo sem consultar os dicionários de um e de outro. Mas nunca a usei, por falta de oportunidade e de gosto. Uso-a agora, motivado pelo comportamento de Saddam Hussein durante a guerra no Iraque. Até o último momento, ele garantia que, com a ajuda de Allah, infringiria castigos aos invasores. Arrotava um poder que não tinha, uma lealdade de seu povo que não era total.
É lícita a pergunta: sabendo de sua inferioridade no campo militar, por que não aceitou os asilos que lhe foram oferecidos com todas as mordomias? Poderia levar seus filhos, amigos, amantes, seu iate e até mesmo as torneiras de ouro de seus banheiros.
Bem, ele preferiu resistir. Não tinha nenhuma arma apocalíptica, as poucas de que dispunha haviam sido destruídas pelos inspetores da ONU. E eram armas artesanais, de fundo de quintal, e não as temíveis bombas de destruição em massa que deram pretexto à invasão dos Estados Unidos e da Inglaterra.
Se não tinha tais armas, se sabia que perderia uma guerra desigual, por que Saddam resistiu, obrigando seu povo a resistir? A única resposta é a do martírio. Fica um bocado difícil considerar mártir um tirano sanguinário e sibarita como Saddam.
Mas o caldo cultural dos árabes não é pragmático como o nosso, cristão ocidental. Todos os iraquianos que morreram durante a guerra estão agora no céu de Allah, um céu de delícias, diferente do nosso, que é tranquilo, mas chato, louvando o Todo-Poderoso por toda a eternidade.
O próprio Saddam, se não está escondido num túnel, numa caverna, num bunker no deserto, deve estar nesse maravilhoso paraíso onde Allah permite a entrada dos gozos materiais, inclusive com as mulheres.
Aqui, na Terra, ficaremos com mais um problema dos muitos problemas desnecessários que já temos: Saddam foi um fanfarrão ou um mártir?


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