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CARLOS HEITOR CONY
O fanfarrão
RIO DE JANEIRO - A palavra está no "Aurélio" e no "Houaiss", sei o que
significa mesmo sem consultar os dicionários de um e de outro. Mas nunca a usei, por falta de oportunidade e
de gosto. Uso-a agora, motivado pelo
comportamento de Saddam Hussein
durante a guerra no Iraque. Até o último momento, ele garantia que, com
a ajuda de Allah, infringiria castigos
aos invasores. Arrotava um poder
que não tinha, uma lealdade de seu
povo que não era total.
É lícita a pergunta: sabendo de sua
inferioridade no campo militar, por
que não aceitou os asilos que lhe foram oferecidos com todas as mordomias? Poderia levar seus filhos, amigos, amantes, seu iate e até mesmo as
torneiras de ouro de seus banheiros.
Bem, ele preferiu resistir. Não tinha
nenhuma arma apocalíptica, as poucas de que dispunha haviam sido
destruídas pelos inspetores da ONU.
E eram armas artesanais, de fundo
de quintal, e não as temíveis bombas
de destruição em massa que deram
pretexto à invasão dos Estados Unidos e da Inglaterra.
Se não tinha tais armas, se sabia
que perderia uma guerra desigual,
por que Saddam resistiu, obrigando
seu povo a resistir? A única resposta é
a do martírio. Fica um bocado difícil
considerar mártir um tirano sanguinário e sibarita como Saddam.
Mas o caldo cultural dos árabes
não é pragmático como o nosso, cristão ocidental. Todos os iraquianos
que morreram durante a guerra estão agora no céu de Allah, um céu de
delícias, diferente do nosso, que é
tranquilo, mas chato, louvando o Todo-Poderoso por toda a eternidade.
O próprio Saddam, se não está escondido num túnel, numa caverna,
num bunker no deserto, deve estar
nesse maravilhoso paraíso onde
Allah permite a entrada dos gozos
materiais, inclusive com as mulheres.
Aqui, na Terra, ficaremos com mais
um problema dos muitos problemas
desnecessários que já temos: Saddam
foi um fanfarrão ou um mártir?
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