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São Paulo, terça-feira, 15 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O risco da mixórdia agrária

JOSÉ DE SOUZA MARTINS

São ainda incertos e preocupantes os passos do novo governo para resolver a questão agrária a seu modo. E para oferecer ao país um programa agrário em que as discordâncias em relação ao já feito, ao já estabelecido e ao que funciona ganhem consistência e viabilidade naquilo que mais interessa ao Brasil neste momento, que é a paz no campo. O partido governante e seus presumíveis aliados têm uma longa história de objeções absolutas, não raro meramente eleitorais, ao modo como até aqui essa questão tem sido tratada pelo Estado.
O grande resultado da política agrária do governo FHC foi viabilizar a aceitação da reforma agrária por parte dos setores mais resistentes e preocupados com os riscos de violação do direito de propriedade. Aceitá-la como instrumento de política social e de correção de injustiças sociais, como instrumento rotineiro de intervenção do Estado nas distorções fundiárias que penalizam não só os pobres do campo, mas o país inteiro. Sem violar o direito de propriedade, no cenário presente um direito fundante, regulamentável mas intocável, da estrutura política da sociedade brasileira e do pacto social que nos governa.
O governo anterior teve o mérito de retirar da questão agrária a dimensão de um insolúvel episódio da luta de classes. Transformou-a num requisito de política social corretiva, interpretando-a como conflito entre o interesse social e o interesse privado. Esse é o caminho da paz. O novo governo tem falado em terra, mas não tem falado em paz. Negociar e manter a paz é que constitui o verdadeiro ato de competência política.
A reforma agrária, sem dúvida, tem inimigos. De um lado, o ativo e viscoso grupo dos oportunistas crônicos da história brasileira que agem em benefício próprio desde a aprovação da Lei de Terras, em 1850. São os que vivem de se apropriar do que é público e alheio, ocupando, demarcando e documentando terras que não lhes pertencem, raramente para fazê-las produzir, no mais das vezes para colher indevidamente o fruto fácil da renda fundiária. Basta lembrar que o ministro Raul Jungmann anulou títulos que correspondiam a mais 60 milhões de hectares de terra possuída indevidamente.


O governo anterior teve o mérito de retirar da questão agrária a dimensão de um insolúvel episódio da luta de classes


São eles os primeiros a comprometer e desmoralizar o direito de propriedade. Esse é o pólo enfermo da realidade agrária, em nome do qual toda sorte de violência é cometida contra populações pobres e indefesas. É na defesa dessa anomalia que pistoleiros matam trabalhadores. Ainda temos ilhas perversas de poder pessoal, da justiça privada se sobrepondo à Justiça pública e institucional, e muitos reagindo como se essa fosse uma questão menor.
De outro lado, a reforma agrária tem como inimigos aqueles que a têm como pretexto para lograr e impor ao país inteiro reformas "estruturais" e "profundas" que não são de consenso, sem debatê-las pelas vias legais e políticas com toda a sociedade para demonstrar a legitimidade de sua opção. Sobretudo sem demonstrar sua viabilidade e sua necessidade históricas. Optaram por consertar no berro as injustiças do passado, mais do que por construir a sociedade justa do presente e do futuro.
Reformas para demolir o modelo econômico, que não agrada a eles e não agrada a muitos brasileiros, como se a derrogação do modelo econômico fosse um trocar de cuecas, a vermelha no lugar da branca. São aqueles que se recusam ao diálogo, que empurram a questão da terra para o centro da conflitividade política e depois se retiram sem optar, sem participar da busca de soluções, sem assumir a devida e pública responsabilidade pelo que nos impuseram e sem assumir a responsabilidade pelo que fazem e querem. São grupos de ação política, mas não de representação e negociação. E aí está o seu bloqueio, que pode se converter em bloqueio do governo.
No programa da candidatura presidencial, o partido falava no assentamento de 1 milhão de famílias. As diferentes facções das hostes partidárias desdenhavam as cerca de 600 mil famílias que foram assentadas ou tiveram sua posse da terra regularizada no governo de FHC.
Há poucos dias, visitando um assentamento que resultou de compra, e não de desapropriação, o presidente da República explicou que seu objetivo não será assentar mais, e sim assentar melhor. Recua, portanto. Ao mesmo tempo, o ministro da Fazenda contingencia as verbas da reforma agrária e inviabiliza não só o "mais" como o "melhor".
De um lado e de outro das facções que se polarizam, no confronto que nos arrasta para o perigo de enfrentamentos sem retorno no campo, o que temos é o confronto entre civilização e barbárie, ambos optando pela barbárie e solapando o espaço para que o presidente atue como magistrado, que é o que lhe cabe.
Que o PT não tenha recebido o mandato de revolucionar as instituições fundamentais do país não dispensa o país de agir democraticamente no sentido de atualizar e resolver aquilo que traz inquietações sociais, difunde injustiças, bloqueia o desenvolvimento econômico e social e preserva o risco de conflitos e convulsões que ferem as intenções e os interesses da maioria, senão de todos. Nessa questão é sobretudo necessário evitar o "governo zero".

José de Souza Martins, 64, é professor titular do Departamento de Sociologia da USP e autor, entre outras obras, de "Os Camponeses e a Política no Brasil" (ed. Vozes).


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