|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OTAVIO FRIAS FILHO
Abaixo o jornalismo
Presidentes não gostam de
conceder entrevistas coletivas. A
política contemporânea se reduziu,
em boa parte, à administração de símbolos e imagens perante a opinião pública. Todo um aparato lastreado em
pesquisas de opinião, recursos de propaganda e comitês de marketing dá
ampla margem de manipulação ao
governante. Nas entrevistas coletivas,
porém, há brecha para o imprevisto.
O presidente Lula, por exemplo, não
concedeu nenhuma coletiva desde a
posse. Tem preferido encontros fechados, na casa de jornalistas amistosos, com a presença de colegas convidados a dedo. Protege-se, assim, contra as próprias dificuldades para se expressar em público, que o têm levado
a cometer seguidas gafes e que se tornariam ainda mais patentes numa situação em que fosse confrontado.
Ao contrário das aparências, Lula
tem pouco treino para a discussão de
pontos de vista -e não apenas como
resultado da inexperiência administrativa. Sempre foi cercado por uma
corte de bajuladores. Sempre foi poupado pela imprensa e pelos adversários. Sempre se beneficiou de um preconceito invertido, o de que, sendo
um líder "autêntico" e "puro", não poderia ser questionado ou interpelado.
O Brasil paga a conta, agora, de tamanha complacência.
Seu colega norte-americano não difere dele, seja no que se refere ao discernimento verbal, seja na aversão a
jornalistas independentes e entrevistas coletivas. George Bush concedeu
anteontem sua terceira entrevista formal no cargo. Procura retomar a iniciativa, acuado pelos fracassos da ocupação militar do Iraque e por um candidato democrata competitivo. Além
disso, a democracia americana não
concebe um presidente que se furte
por completo a inquirições públicas.
Não que as coletivas sejam imunes à
manipulação. Em geral, o presidente
decide quem vai dirigir-lhe perguntas
e o jornalista tem pouca oportunidade
de replicar. Mesmo assim, esses encontros permitem aos cidadãos um
contato um pouco mais direto com o
chefe do governo. Permitem, sobretudo, que se possa examinar sua atitude
diante das dúvidas e críticas que circulam pelos meios de comunicação.
Bush não respondeu às perguntas
problemáticas. Repete generalidades
nas quais um número cadente de pessoas parece ainda acreditar: que o Iraque era uma ameaça ao mundo e aos
Estados Unidos, que a invasão visa levar a democracia àquele país, que a
América está refazendo o mundo para
que se torne um lugar seguro e livre,
que ele chora com os familiares dos
soldados mortos.
Por que "levar" a democracia ao Iraque e não a dezenas de outros países
sob ditaduras? Por que insistir na
ameaça iraquiana quando está claro
que ela não existia, ao menos não a
ponto de justificar mais uma guerra?
Como respeitar a autodeterminação
do povo iraquiano, que pode escolher
o regime que quiser sob a condição de
que o governo americano considere
esse regime como "democrático"?
A coletiva de Bush, previsível e sem
novidades, deu ao observador crítico a
dimensão do gigantesco engodo que
tem sido sua política externa desde a
legítima invasão do Afeganistão taleban. Quanto a Lula, continua a se esquivar de semelhante prestação de
contas. Em vez de coletivas, ele e seus
assessores dão à imprensa "lições" sobre como deveria ser o jornalismo hoje: o contrário do que era quando eles
estavam na oposição...
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: A voz do povo Próximo Texto: Frases
Índice
|