São Paulo, quinta-feira, 15 de abril de 2004

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OTAVIO FRIAS FILHO

Abaixo o jornalismo

Presidentes não gostam de conceder entrevistas coletivas. A política contemporânea se reduziu, em boa parte, à administração de símbolos e imagens perante a opinião pública. Todo um aparato lastreado em pesquisas de opinião, recursos de propaganda e comitês de marketing dá ampla margem de manipulação ao governante. Nas entrevistas coletivas, porém, há brecha para o imprevisto.
O presidente Lula, por exemplo, não concedeu nenhuma coletiva desde a posse. Tem preferido encontros fechados, na casa de jornalistas amistosos, com a presença de colegas convidados a dedo. Protege-se, assim, contra as próprias dificuldades para se expressar em público, que o têm levado a cometer seguidas gafes e que se tornariam ainda mais patentes numa situação em que fosse confrontado.
Ao contrário das aparências, Lula tem pouco treino para a discussão de pontos de vista -e não apenas como resultado da inexperiência administrativa. Sempre foi cercado por uma corte de bajuladores. Sempre foi poupado pela imprensa e pelos adversários. Sempre se beneficiou de um preconceito invertido, o de que, sendo um líder "autêntico" e "puro", não poderia ser questionado ou interpelado. O Brasil paga a conta, agora, de tamanha complacência.
Seu colega norte-americano não difere dele, seja no que se refere ao discernimento verbal, seja na aversão a jornalistas independentes e entrevistas coletivas. George Bush concedeu anteontem sua terceira entrevista formal no cargo. Procura retomar a iniciativa, acuado pelos fracassos da ocupação militar do Iraque e por um candidato democrata competitivo. Além disso, a democracia americana não concebe um presidente que se furte por completo a inquirições públicas.
Não que as coletivas sejam imunes à manipulação. Em geral, o presidente decide quem vai dirigir-lhe perguntas e o jornalista tem pouca oportunidade de replicar. Mesmo assim, esses encontros permitem aos cidadãos um contato um pouco mais direto com o chefe do governo. Permitem, sobretudo, que se possa examinar sua atitude diante das dúvidas e críticas que circulam pelos meios de comunicação.
Bush não respondeu às perguntas problemáticas. Repete generalidades nas quais um número cadente de pessoas parece ainda acreditar: que o Iraque era uma ameaça ao mundo e aos Estados Unidos, que a invasão visa levar a democracia àquele país, que a América está refazendo o mundo para que se torne um lugar seguro e livre, que ele chora com os familiares dos soldados mortos.
Por que "levar" a democracia ao Iraque e não a dezenas de outros países sob ditaduras? Por que insistir na ameaça iraquiana quando está claro que ela não existia, ao menos não a ponto de justificar mais uma guerra? Como respeitar a autodeterminação do povo iraquiano, que pode escolher o regime que quiser sob a condição de que o governo americano considere esse regime como "democrático"?
A coletiva de Bush, previsível e sem novidades, deu ao observador crítico a dimensão do gigantesco engodo que tem sido sua política externa desde a legítima invasão do Afeganistão taleban. Quanto a Lula, continua a se esquivar de semelhante prestação de contas. Em vez de coletivas, ele e seus assessores dão à imprensa "lições" sobre como deveria ser o jornalismo hoje: o contrário do que era quando eles estavam na oposição...


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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