São Paulo, quinta-feira, 15 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A construção da desordem

CESAR MAIA

Em seu livro "A Construção da Ordem", já clássico, o professor José Murilo de Carvalho desenvolve uma tipologia das elites políticas, suas relações com a economia, com a burocracia e suas formas de gestação em diversos casos, países e épocas. O objetivo do livro é nos ajudar a entender a dinâmica da elite política imperial no Brasil. É um livro intrigante, pois introduz uma metodologia geral que permite aos políticos e politólogos, num exercício devidamente contextualizado, buscar entender as razões da emergência de uma certa elite política num determinado período.
O professor passeia pelos casos da Inglaterra e EUA, na passagem do século 18 ao 19, e mostra as classes proprietárias ocupando diretamente o poder e dando um caráter complementar à atividade política. Ele analisa burocracias públicas homogêneas e heterogêneas.
O primeiro caso mais eloqüente é o dos mandarins chineses, treinados por 35 anos e selecionados em 160 dias para o exercício da administração pública. Depois, relata as semelhanças entre as elites políticas turca, de Ataturk, e brasileira imperial. Sinaliza como referência de elites políticas burocráticas a Prússia de Bismarck e suas características. Destaca a homogeneidade da elite imperial brasileira a partir da função nuclear de Coimbra e, depois, das faculdades de direito de São Paulo e Olinda, que a "nacionalizam" e que, por essa condição, ajudam a explicar a unidade nacional espacial conseguida.


Não há mais método nem modelo. De improvisação em improvisação, caminha-se para o caos. É a construção da desordem


Afirma o papel central dos magistrados na construção de uma elite política imperial, com ampla margem de autonomia sobre as influências dos proprietários rurais e dos comerciantes. Sem esquecer a dinâmica em direção ao final do século 19, com a flexibilização do Estado, a ascensão dos profissionais liberais, embora ainda com a hegemonia da formação jurídica, no caso, dos advogados. E, finalmente, sublinha a diferença e as razões que ajudam a explicar o fatiamento da América hispânica devido à heterogeneidade das antigas elites e daquelas em ascensão nas guerras de independência.
Nos desenhos dessa tipologia, logo no início, o autor aponta para a visão de Lênin ("O que Fazer?") e de sua vanguarda de revolucionários profissionais. Esse é um desenho em que a condição de origem da elite política dominante é sua rigorosa homogeneidade ideológica, cuja formação independe do nível e do tipo de educação antes recebida e, claro, com autonomia radical das elites econômicas existentes em nome dos oprimidos que devem emergir, sempre através do canal dos revolucionários profissionais.
Essa longa introdução, com as simplificações naturais, ajuda-nos a analisar a gestação da elite política hoje dominante no Brasil e as razões do impasse em que vivemos.
O governo do PT foi empolgado por um grupo de profissionais da política -com um ramo de ex-sindicalistas há muito afastados de sua origem- de formação tipicamente leninista. Uma vez no poder, sua natureza destacou-se, como seria natural. Sua autonomia, de partida, em relação à burocracia e à economia era total. Ascende carregando sua natureza e sua experiência limitada à atividade política. Confronta-se com um mundo onde o Estado já não tem mais o poder de produzir desenvolvimento, reforçando sua autonomia. Descola-se da burocracia profissional e deixa isso claro ao priorizar a reforma previdenciária e ir atrás de recursos para dar ao Estado a autonomia fiscal que não tem. Precisa de tempo e teme a desestabilização econômica. Para isso, faz gestos efetivos em relação à economia com medidas ortodoxas de estabilização. Teme a desestabilização parlamentar e, para isso, compõe com vários partidos e lideranças parlamentares. Mas, como a hegemonia em questões relevantes deve ser garantida ao grupo de revolucionários profissionais, aos aliados cabem as migalhas e a clientela, coisa que atende à lógica da reprodução dos mandatos individuais. Esse modelo -quando puro e em outra época- não deu certo pela desarticulação com a burocracia pública e com a base econômica, tendo custado centenas de milhares de vidas em 20 anos de stalinismo.
Hoje, num ambiente radicalmente diverso, a elite de profissionais revolucionários descolada da burocracia não consegue administrar. Busca a estabilidade política por meio de sinais calmantes ao mercado. Assim, perde sua referência e desarruma sua unidade ideológica, básica para esse tipo de elite. Constrói uma maioria parlamentar à custa de nuclearizar em pouquíssimos quadros a condução política, única forma de manter o controle. E retira o véu da prática revolucionária de "expropriação" da burguesia e do "fim justifica os meios", que tem seu DNA na captação de recursos para financiar o partido, em que a questão ética está lastreada nesse "compromisso matriz".
O desnudamento de vários casos desmoraliza o discurso anterior e não há como separar, na sociedade de hoje, a ética política da ética pessoal, ou seja, a busca de recursos para a causa, e não para as pessoas.
A dinâmica desse processo está construindo a desordem. Acompanha-se no Brasil um desenho novo, não tipificado ainda, que, partindo de um tipo conhecido para um outro período, desintegra-se neste. Articula-se para sobreviver e agrava a desintegração, afetando a administração, a política, a economia e a ética. Não há mais método nem modelo. De improvisação em improvisação, caminha-se para o caos. É a construção da desordem. Não há saída paliativa capaz de remendar a "estrutura Frankenstein" criada de fato.
Há que repensar as razões e, com coragem, começar tudo de novo. É o que todos desejam.

Cesar Maia, 58, economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro.


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